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“Resistência”: Ficção-científica subestimada reflete a humanidade que ignoramos hoje | 2023

Eu vou pro paraíso?

Penso, logo existo. A constatação irrefutável de René Descartes, quando alinhada à fenomenologia existencialista oriunda, entre outras filosofias, à metafísica de Sartre, costuma resultar em ótimos argumentos literários e cinematográficos que alcançam as mais diversas culturas por meio de sua temática universal. Sartre desenvolveu uma linha intelectual baseada na premissa de que a existência precede a essência, contrariando o que Aristóteles havia concluído mais de dois milênios antes. É possível identificar traços desse viés em obras como “Eu, Robô” (2004, dir. Alex Proyas) e “Blade Runner” (1982, dir. Ridley Scott), ambas adaptações de livros consagrados que assumem um caráter de afeição aos interesses de andróides e replicantes em seu ímpeto ao instinto básico mais primitivo existente: sobreviver.

Agregando-se ao hall de obras que culminam na catarse da guerra robótica, “Resistência”, lançado nos cinemas em setembro de 2023, se faz como um mea culpa antecipado pelo caos que ele mesmo prevê, escolhendo a empatia às máquinas como ferramenta criativa em vez de demonizar a Inteligência Artificial tal qual fizeram anteriormente seus inúmeros pares. O filme, dirigido por Gareth Edwards (de “Godzilla” e “Rogue One”, lançados em 2014 e 2016) e co-roteirizado com Chris Weitz (diretor de “A Bússola de Ouro”, de 2007), parece em princípio um mero compilatório de conceitos já trabalhados anteriormente em dúzias de outras obras, mas seu cerne se mostra autoconsciente das referências aos quais se espelha e assume uma responsabilidade sensível ao entender que a atualidade segue regada a debates crescentes quanto ao lugar que a Inteligência Artificial ocupa ou deveria ocupar.

A grande questão de “Resistência” é o embate divino entre criador e criatura dentro de uma relação de subserviência, rebelião e castigo que comumente está atrelado aos preceitos bíblicos – e não por acaso, o conceito de paraíso é abordado pontualmente com uma passagem emotiva onde a aceitação do não-lugar se manifesta no temor de uma criança pela morte. É nessa combinação ambígua que o filme alcança sua inteligibilidade e exprime humanidade onde a biologia dá lugar a segmentos randômicos em circuitos integrados. A problemática criada para a trama traz a abolição da IA no continente americano após a mesma ter, supostamente, detonado uma ogiva nuclear em Los Angeles. Um subcontinente chamado Nova Ásia, no entanto, tem abrigado esses indivíduos mecânicos que outrora tiveram múltiplas utilidades na vida cotidiana ocidental, e um grupo de forças especiais estadunidense tenta encontrar o líder da resistência robótica denominado O Criador, com o codinome nepales “Nirmata”, que seria quem encabeça a revolta contra a interferência americana que visa a extinção da IA.

Ocorre que, com a existência precedendo a essência conforme atestado por Sartre, surge o questionamento: qual é a essência do ser mecânico cuja inteligência é artificial? Pergunta-se isso pressupondo que exista uma de fato, obviamente. Pode-se dizer que essa é a maior pergunta que o filme levanta, e a resposta tende a vir à tona subjetivamente, indo de encontro às crenças individuais de cada espectador sobre o que se entende por “ser vivo”, mas sempre fazendo exploração de um pendor que deveria estar “do lado de cá” do jogo: humanidade – e humanidade não em referência ao coletivo de humanos, mas ao costume fraterno que há tempos vem sendo abandonado. A leitura em caráter metafísico do filme é pertinente de ser observada, mas o mais adequado talvez seja apreciar seu viés metafórico enquanto, alegoricamente, o filme imprime as condutas socioeconômicas e armamentistas da atualidade com uma destreza que, embora não seja explícita em sua totalidade, gera reflexões que seguem além do subir dos créditos.

Há também, como em todo e qualquer filme já feito, aquela parcela do público que não se agrada tanto com o que foi apresentado. Como demorei meses para dissertar minha opinião (após ver no cinema e rever várias vezes em casa), tomei a liberdade de procurar os comentários de outros críticos e notei uma quase unanimidade negativa no que diz respeito à estruturação e amarração do roteiro. Entendo os argumentos, mas me coloco em posição de discordância. Embora o filme se apresente como uma ficção-científica (e ele realmente o é), seu foco principal está nas relações interpessoais humanas e não-humanas. O roteiro não se preocupa em aprofundar a busca por quem teria detonado a ogiva, ou em deixar às limpas outras respostas sobre os caminhos que levaram o mundo àquele estado, não; ao invés de apontar culpados e promover uma caça às bruxas, o foco aqui reside em olhar para o futuro enquanto se aplica um paralelo lacerante com o presente.

O passado é irrelevante para o andamento da trama, e por isso é ignorado – o que gera um contraste enorme com os interesses do protagonista, Joshua, que parte em sua jornada rumo à Nova Ásia justamente por questões pendentes em seu passado. A correlação da parábola proposta com os princípios de causalidade aristotélica se torna a maior ironia da obra, uma vez que o passado é descartável mas também é o fio condutor dessa paralaxe moderna. Encarnando Joshua temos John David Washington em sua melhor performance até o momento. Ele entrega caras e bocas, mas também injeta sutileza e camadas ao seu personagem com uma caracterização sustentada pela dor e pela culpa. Joshua se desconstrói em sua jornada graças ao talento atenuado de John David, e sua relação com a pequena Alphie, vivida com um brilho majestoso pela revelação mirim Madeleine Yuna Voyles, tem uma brutalidade que se desmancha com a quebra dos pré-conceitos.

Em quesitos técnicos, de um modo geral, o filme é praticamente impecável. Os excelentes trabalhos das equipes de design de produção, fotografia, edição de som e efeitos visuais (sendo essas duas últimas categorias indicadas ao Oscar 2024 e fortíssimas candidatas a levar as estatuetas) modelam uma experiência cinematográfica memorável e bastante imersiva. As locações reais, com a integração dos efeitos práticos e digitais, fazem o filme ser crível e tátil.

A ótima trilha de Hans Zimmer não se faz um personagem a ser notado, mas cumpre com louvores seu papel de indução emotiva mesmo que “nas sombras”. Não obstante, o filme vai além de ser só um espetáculo visual e se confirma também uma aventura familiar (tanto no sentido de ser para a família, com a classificação indicativa baixa, como no sentido de ser um filme que sentimos já ter visto) com mensagens próprias e importantes para o agora, onde humanos entram em guerra contra humanos por ideologias divergentes e diferentes visões de mundo. Embora seja futurista, o filme mira o hoje porque é no hoje que nós existimos.

A existência precede a essência. E para quem gosta de debates filosóficos, religiosos, ficto-científicos, políticos e bélicos, “Resistência” é um prato cheio não por fornecer respostas, mas por induzir às perguntas certas. Na data da publicação deste artigo, o filme se encontra disponível no catálogo da Star+.

Vinícius Martins

Cinéfilo, colecionador, leitor, escritor, futuro diretor de cinema, chocólatra, fã de literatura inglesa, viciado em trilhas sonoras e defensor assíduo de que foi Han Solo quem atirou primeiro.

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