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“Amanhã”: Doc expõe a cisão sócio-política intensificada no Brasil dos últimos vinte anos | 2024

Lidar com o imprevisto está no cerne do documentário. Um formato que, geralmente, propõe um contato mais direto com o real e traz para frente das câmeras figuras que não fazem parte do campo artístico, não raro se mostra suscetível a reestruturações causadas por eventos que escapam de qualquer planejamento. Um dos casos mais icônicos é o de “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), do mestre Eduardo Coutinho, que precisou esperar quase vinte anos para ser finalizado por conta da deflagração da Ditadura Militar em 1964, fato que alterou de modo definitivo os rumos do projeto.

Para citar um exemplo mais recente, vale mencionar a maneira como os diretores Adirley Queirós e Joana Pimenta administraram a prisão de uma das atrizes não profissionais que protagonizaram o magnífico “Mato Seco em Chamas” (2022), obra de ficção que soube absorver e dar significado ao inesperado. Desafios como esses também brotam em “Amanhã”, documentário dirigido por Marcos Pimentel, que aborda as transformações na vida de três pessoas nas últimas duas décadas, marcadas por intensas reviravoltas, e como a desigualdade social influenciou suas trajetórias.

Em 2002, o cineasta Marcos Pimentel decidiu filmar Júlia e Cristian, dois pequenos irmãos moradores de uma favela às margens da Barragem Santa Lúcia, localizada numa região nobre de Belo Horizonte. Talvez como quem ilustrasse a esperança que pairava no ar após a eleição de um governo de esquerda, Pimentel tem a ideia de colocá-los por alguns dias na companhia de José Thomás, criança oriunda dos prédios de classe média alta que ficam literalmente do outro lado da grande poça d’água. Liberado pelos pais (“Isso vai ser bom para o currículo dele”), o pequeno Zé, enquanto brinca por vielas estreitas e barracos, entra em contato com uma realidade absolutamente distante, apesar de tão próxima. Aquela convivência inocente representaria, então, o esperado fim de uma barreira que não só alimenta estereótipos e preconceitos, mas também atrasa a construção de um país mais igualitário. No entanto, o turbilhão de acontecimentos que se sobrepuseram nos anos seguintes a esse primeiro contato mostrou que ainda estamos longe desse ideal.

Cortando para 2022, após a convulsão política que se intensificou a partir do primeiro governo Dilma e os abismos ampliados pela pandemia de Covid 19, vemos o reencontro entre o documentarista e Júlia. Com os olhos vidrados na tela que exibe as sapequices de sua versão mirim, a moça, agora mãe, revive os sentimentos de uma fase repleta de dificuldades, porém, sem as responsabilidades que se apresentaram e com a consciência de tudo aquilo que lhe foi negado. O irmão Cristian, como uma parte considerável dos jovens periféricos que não recebem a devida atenção do Estado, acabou caindo na criminalidade e aguarda – uma espera também acompanhada pela equipe do longa em sua primeira metade – a hora de voltar para casa. Alguns momentos são bem significativos por revelarem a plena sintonia (é possível falar em amizade) entre os envolvidos na produção e as figuras ali documentadas, como, por exemplo, o telefonema de Cristian para a mãe ainda de dentro da prisão, ou quando, já em liberdade, o rapaz tece ao lado da irmã um diálogo contundente sobre a instabilidade política que se instalou no País e a forma como a pandemia foi tratada pelo governo de extrema-direita eleito em 2018: “Gripezinha? Isso é um líder?”, questiona Christian com notável lucidez.

O imprevisto dá as caras em vários momentos de “Amanhã”. De flagrantes como o tratamento dado por seguranças a pequena Júlia enquanto ela caminhava pelos corredores de um shopping, aos seus eventuais sumiços por conta de uma aparente depressão, ou até mesmo a complexa situação de Christian com a Justiça, não são poucos os eventos que exigiram dos realizadores persistência e sabedoria para que o filme e sua importante mensagem ganhassem um arremate respeitoso, compreendendo a humanidade daquelas pessoas. Contudo, o fato não planejado que mais confirma a divisão na qual nos encontramos hoje é o relacionado à participação da terceira ponta desse triângulo, José Thomás. Se a tranquila participação em 2002 apontava para a ilusória sensação da queda dos muros invisíveis que bloqueiam o contato mais estreito com o outro, os novos posicionamentos expostos, claramente motivados por visões políticas divergentes, deixam evidentes o quanto se retrocedeu no debate em sentido mais amplo, algo que é, inclusive, comentado pelo realizador, que assume por vezes a função de narrador.

Articulando as incertezas da vida com as impossibilidades das filmagens, “Amanhã” se orgulha de ter metade da equipe nascida no morro. Entre cenas com aspecto mais posado e instantes que transbordam acaso, eis um documentário que abarca, no seu trato com encontros e desencontros ao longo do tempo, questões essenciais para a formação de uma sociedade mais justa, capaz de potencializar a energia e a inteligência de milhões de Júlias e Cristians. Olhar para eles, não só através de uma tela, pode ser a chave para que o tal “país do futuro” finalmente vire realidade o quanto antes. Quem sabe amanhã?

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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