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“Memórias de um Esclerosado”: com bom humor e traço firme, Rafael Corrêa narra convivência com a esclerose múltipla sem heroísmo ou autopiedade | 2025

Produzir um relato sobre fatos históricos exige pesquisa. É o ponto de partida, o dever mínimo de qualquer documentarista comprometido com seu ofício. Mas não basta acumular dados. É preciso também um olhar crítico, consciente de que todo recorte carrega um viés, pois uma narrativa histórica é, em alguma medida, uma construção. Mas, e quando o objeto do documentário é o próprio autor, o que está em jogo?

Nesse caso, não se trata de distanciamento, mas de exposição. Não há fontes externas a consultar, não há margem para neutralidade (se é que isso existe em algum lugar). É o cotidiano que se transforma em matéria. É a intimidade que ganha forma pública. Em “Memórias de um Esclerosado”, Rafael Corrêa se coloca no centro da narrativa sem buscar heroísmo ou piedade. A força do documentário está justamente na maneira como ele abandona o tom edificante que costuma marcar relatos de superação e opta por algo mais honesto. Um registro permeado por humor ácido, angústia e uma lucidez sobre o corpo e o tempo.

O formato se organiza a partir de uma estrutura em que registros íntimos, trechos encenados e animações de natureza bastante cartunesca se alternam com liberdade. Essas animações não são um mero adorno estético. Rafael Corrêa, também diretor do filme, é um quadrinista premiado internacionalmente, e as ilustrações funcionam como uma extensão de sua voz, ora narrando passagens biográficas, ora as distorcendo com ironia e inventividade, como se a imaginação tomasse o lugar das palavras quando elas falham.

Essa escolha criativa afasta o tom clínico ou didático. O filme não tenta explicar a doença, nem se apoia em discursos edificantes. Em vez disso, aposta na experiência subjetiva de viver com ela, evitando filtros e dramatizações. Mas é o humor, muitas vezes ácido, por vezes melancólico, que sustenta a narrativa em seus momentos mais duros. Há uma leveza inesperada que nasce da recusa em transformar a dor em espetáculo. “Memórias de um Esclerosado” ri do que pode, ironiza o que assusta e, nesse processo, desafia expectativas sobre o que significa adoecer.

No fundo, ”Memórias de um Esclerosado” também é uma tentativa de consolo, não no sentido de apaziguar ou redimir, mas de construir um espaço possível onde o absurdo da doença conviva com o humor, o afeto e a criação. Há consolo na partilha, na possibilidade de transformar a experiência individual em algo que ecoa. Assim, Rafael Corrêa propõe uma outra forma de testemunho. Menos voltada ao exemplo e mais ao gesto de continuar dizendo, desenhando, filmando. Um cinema que reconhece seus limites e, ao reconhecê-los, se torna mais verdadeiro.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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