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“La Chimera”: Filme aclamado em Cannes é uma viagem onírica repleta de melancolia e devaneios | 2024

Na mitologia grega, a Quimera é uma criatura híbrida com capacidade de emanar chamas pelo nariz. Ela é retratada como uma mistura entre leão, cabra, serpente e dragão, comumente protagonizando mitos e histórias sobre heróis que a enfrentam como um desafio em suas missões. Na idade média, por outro lado, a Quimera passou a ser a representação do mal, como personificação do que há de ruim no mundo. Atualmente, é comum ver a utilização desse termo aludindo a qualquer coisa absurda ou fantasiosa, principalmente por meio da mistura de elementos improváveis. Mesmo que tenha sido utilizada na Antiguidade como um símbolo de coragem dos heróis que a enfrentaram, o significado da Quimera vai além, e diz respeito fundamentalmente ao desejo do impossível, ao improvável e o imaginário.

Essa simbologia soa presente em La Chimera (2023), quarto longa- metragem dirigido e roteirizado por Alice Rohrwacher, filme que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2023. Partindo da ideia de que todos buscam concretizar seus próprios devaneios e ilusões, o filme acompanha uma gangue de ladrões de antigos objetos funerários e arqueológicos para vendê-los no mercado de arte.

Nesse sentido, a Quimera significa o desejo pelo dinheiro fácil. O melancólico Arthur (Josh O’Connor) é dotado de certo dom sensitivo que o faz perceber onde estão soterrados os sepulcros que guardam os itens valiosos. Recém saído da prisão, ele está viajando de volta para encontrar seus companheiros que moram na periferia da Toscana, na Itália.

A realidade dentro da qual Arthur e seus amigos vivem é apresentada por um plano aberto que dá o tom do que motiva as suas ações. A casa do protagonista, um barraco de palafitas no alto de um morro, revela uma miséria que vai além da falta de dinheiro para assegurar uma vida digna. É, além de tudo, uma miséria existencial.

Para Arthur, a sua Quimera se parece com a mulher que ele perdeu, Beniamina. Para encontrá-la, ele desafia invisível e procura por toda a parte um mitológico caminho para a vida após a morte. A miséria dos personagens é um retrato inconveniente de uma sociedade outrora pujante, sofisticada e ostentadora, que não admite a redução de status. O casarão decadente onde mora a sogra de Arthur, uma professora que dá aula de canto para jovens que nutrem aspirações artísticas, evidencia hábitos aristocráticos ilusórios, saudosos de um tempo distante que jamais retornará.

Nesse contexto, vale destacar o trabalho da atriz brasileira Carol Duarte, que encarna a personagem que responde pelo nome de Italia. Ela é uma das alunas da professora, que lhe dá comida e abrigo. Em troca, sujeita-se a viver como sua empregada. O nome provocativo e a dinâmica de classes – ainda que ilusória – estabelecida entre as duas é uma metáfora sutil para a relação de exploração, consistente na frivolidade de uma elite que enxerga o país apenas como instrumento de satisfação de seus próprios caprichos.

Cenas como essa ou em outras como a do grupo de ladrões se reunindo para celebrar suas conquistas arqueológicas num festival de cantoria, exibem um lirismo poético e melancólico. As músicas, de apelo folclórico, relatam a rotina desgraçada daqueles que profanam os mortos para tentar garantir o seu ganha pão, ao mesmo tempo que desvelam o submundo imoral do mercado da arte.

Esses pequenos detalhes do roteiro, trazendo subtextos com comentários sociais críticos, servem bem à trama sem parecer forçado. Em um país profundamente católico e tão ligado à arte como a Itália, profanar os mortos para incrementar galerias e acervos pessoais é bastante provocador.

Ao apresentar essas fissuras sociais, pode-se dizer que o filme de Rohrwacher tem forte inspiração no neorrealismo italiano, sem renunciar a uma ternura inocente e de certa maneira esperançosa. Por ser um filme que nos convida à certa reflexão, os diálogos poderiam de ter sido trabalhados com maior esmero. À exceção das cantigas folclóricas, o texto tem pouca profundidade e, muitas das vezes, peca por uma banalidade enfadonha que nos desconecta da experiência.

Apesar desse pequeno desvio, vale a pena se deixar levar por essa jornada entre vivos e mortos, entre florestas e cidades, entre celebrações e solidão nas quais se desenrolam os destinos entrelaçados desses personagens, todos à procura da Quimera.

Vitor Pádua

Advogado que expia o juridiquês com a paixão pela fotografia e pelo cinema.

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