“Ferrari”: Elenco estelar e direção sofisticada de Michael Mann garantem cinebiografia acima da média | 2024
Cinebiografias acabam sendo pontos de dores da produção cinematográfica mundial, afinal conseguir contemplar passagens relevantes dos cinebiografados de maneira coesa e estruturada requerem uma boa dose de olhar de direção cirúrgica e um roteiro que junte todas as pontas de forma consistente. Recentemente, tivemos como exemplo o pavoroso “I Wanna Dance with Somebody” (2022), que ousou criar um mosaico de highlights da vida da cantora Whitney Houston que nunca pinta de fato quem foi a artista no seu íntimo e nem mergulha nas complexidades de sua vida conturbada com drogas.
Mais recentemente, “Maestro” (2023) buscou construir um retrato pessoal dos relacionamentos amorosos do maestro Leonard Bernstein abrindo mão do processo criativo do artista para focar na vida pessoal. Estando certo ou errado na abordagem, não existe receita para fazer uma cinebio de peso e que funciona, como foi com os casos de Capote (2005) ou Amadeus (1984).
Eis que juntam em um projeto só o veterano diretor Michael Mann com o roteirista Troy Kennedy Martin para adaptar o livro do escritor e jornalista da CBS Brock Yates sobre o criador da marca Ferrari: Enzo Ferrari -The Man and The Machine. Este era um projeto dos sonhos de Michael Mann, que há 20 anos tenta tornar realidade esta adaptação.
Nessas duas décadas, o papel de protagonista passou pelas mãos de atores como Robert De Niro, Christian Bale e Hugh Jackman até chegarem ao nome de Adam Driver para a escalação final. Sem dúvida, o resultado é um papel arrebatador para um ator disciplinado e perfeccionista que sequestra a atenção do espectador a cada vez que ele entra em cena. Driver está magnético no papel e é o grande tour de force deste elenco que ainda conta com Penélope Cruz, Shailene Woodley, Gabriel Leone e Patrick Dempsey.
O recorte escolhido para o filme é o ano de 1957, ano decisivo para a escuderia Ferrari se firmar como a potência em corridas e carros de luxo mundialmente. Para tanto, Enzo conciliava sua conturbada vida pessoal com sua esposa Laura Garello (Penélope Cruz), ambos enlutados com a morte de seu único filho em face de uma distrofia, e a escalação de pilotos para a Mille Miglia, uma corrida automobilística que se estendia por estradas públicas italianas totalizando 992.332 milhas. Esta competição era a maior vitrine da época para os carros mais velozes e também para os pilotos mais tops da categoria.
Um desses pilotos é o espanhol Alfonso de Portago, interpretado com charme e simpatia pelo brasileiríssimo Gabriel Leone em seu primeiro papel em uma grande produção hollywoodiana. Em entrevista recente para a Contents Magazine, Leone celebra “em minha primeira experiência no mercado norte-americano, primeira vez atuando em inglês, poder ser dirigido por Michael Mann e ser parte de um dos projetos da vida dele, foi definitivamente um sonho que se tornou realidade”.
Patrick Dempsey é outro piloto, Piero Taruffi, que tem sua importância bastante destacada na dinâmica da Mille Miglia. Como curiosidade o ator também corre na vida real e tem como hobbies coleções de carros vintage.
Conhecido pela fama de mulherengo, Enzo Ferrari ainda mantinha uma amante no centro de sua vida, Lina Lardi, interpretada pela Shailene Woodley. Lina tinha um filho com Enzo, Piero Lardi (Giuseppe Festinese), um garoto no qual a existência era mantida em sigilo por Enzo em uma área rural italiana, afastada de Modena. A estratégia tinha como objetivo manter Laura não consciente desta vida paralela que ele mantinha com a amante e um filho fora do casamento.
É inegável a destreza com que Michael Mann captura as cenas de corrida, ora investindo em tomadas na perspectiva da primeira pessoa dos pilotos, ora usando travellings belíssimos panorâmicos das estradas italianas. Os enquadramentos alinhados e as disposições dos atores em cena são outro ponto alto deste filme que traz a signature bastante autoral do diretor de pérolas como “Fogo Contra Fogo” (1995) e “Colateral” (2004).
Recentemente, outra adaptação de um símbolo da alta costura italiana, também com Adam Driver, “Casa Gucci” (2021) teve críticas vorazes em relação ao sotaque estereotipado com que o elenco “brincava” de falar inglês com fisgadas de um italiano macarrônico. No entanto, Ferrari utiliza de forma bem mais suave as entonações e expressões italianas usadas pelo elenco. O efeito aqui é mais eficiente do que o empregado por Ridley Scott ao retratar os escândalos da família Gucci.
“Ferrari” é um drama sólido com uma direção impecável de Michael Mann, que se desdobra para contar essa história com paixão e adrenalina na medida certa. É uma ode à excelência da marca Ferrari e aos meandros do bastidor para consolidar Ferrari como o suprassumo do automobilismo.