“Eu, Capitão”: Longa retrata a realidade brutal da migração africana rumo à Europa | 2024
Atualmente muito se discute sobre ‘lugar de fala’. Porém é bom esclarecer que esse conceito parte de uma análise do discurso e não de proibição do mesmo. Existem muitas maneiras de se produzir conhecimento e dentro dessas possibilidades, há o da vivência, mas também aquele realizado através de um método que permite certo distanciamento pessoal.
“Eu, Capitão” é dirigido por Matteo Garrone, um italiano típico. “Deixem os africanos contarem suas próprias histórias”, dirão alguns. Embora essa frase contenha um alerta legítimo sobre a falta de visibilidade do cinema africano, também é uma limitação da arte enquanto instrumento de produção de conhecimento. Todos estão sujeitos a críticas, e a arte pode ser reprovável em alguns casos, entretanto para que essa reprovação exista, a arte também precisa existir. Dito isso, Garrone acerta ao dar o devido protagonismo às verdadeiras vítimas de uma das maiores crises humanitárias do nosso século, entregando uma narrativa comovente, brutal e assustadoramente real.
Na trama, acompanhamos Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), dois jovens senegaleses que partem de sua terra natal em direção à Europa, buscando uma vida melhor. No entanto, ao longo dessa jornada, eles se deparam com perigos e desafios muito além do que jamais imaginaram, transformando a busca pelo sonho em um verdadeiro pesadelo.
A história começa no Senegal, destacando-se desde o início pela habilidade de Garrone em retratar o povo e a cultura local de forma autêntica, com suas tradições sendo mostradas através de danças, vestimentas e um vibrante colorido. A inclusão do idioma local é notável, pois, embora pareça básico, é um elemento frequentemente negligenciado nas produções ocidentais. Nada neste retrato parece exótico ou “diferente”; pelo contrário, tudo é natural e familiar, transmitindo desde o princípio a riqueza e vitalidade de um povo com uma cultura própria.
Os primeiros passos dos jovens são repletos de esperança, representando um verdadeiro salto de fé. Esse sentimento é contagiante, já que, nesse primeiro momento o fator de risco é minimizado e os obstáculos são pouco enfatizados. A ideia de uma Europa receptiva e cheia de oportunidades se sobrepõe a qualquer outra. No entanto, se o perigo se esconde nas sombras durante todo o primeiro ato, ele irrompe na narrativa de forma meteórica, e a brutalidade se instaura.
O segundo ato é uma via-crúcis que não poupa o espectador. A violência é explícita, sem margem para a imaginação ou sugestão. Se nos noticiários somos poupados, o horror que os africanos vivem diariamente aqui é mostrado em primeiro plano, sem cortes e com um realismo doloroso. Ao chegar ao desfecho, há espaço para o heroísmo, mas não sem sacrifícios e cicatrizes. O saldo é difícil de calcular e o sabor é, na melhor das hipóteses, agridoce.
O filme teve seu lançamento no Festival de Veneza em 2023, onde recebeu o Leão de Prata pela direção de Matteo Garrone e o Prêmio Marcello Mastroianni pela atuação de Seydou Sarr, um jovem senegalês de talento excepcional. Sua escolha como representante italiano para o Oscar de Melhor Filme Internacional apenas reforça o teor universal da temática abordada, afinal, as premiações, assim como os festivais, também são forças políticas e de produção de discurso. O reconhecimento garante ao filme uma melhor distribuição e visibilidade. Uma pena que as chances disso se converter em engajamento e conscientização é igual a zero. O mundo permanecerá o mesmo seja lá quantas obras desse tipo forem lançadas. Porém, isso não diminui a força do projeto, e se “Eu, Capitão” não transforma, ele ao menos caminha na direção certa.