“Conto de Fadas”: Ousado e provocador, longa promove embate peculiar entre quatro figuras que alteraram o curso da história | 2024
Há séculos, o conceito de purgatório está enraizado no imaginário popular, a ponto de ser incorporado em textos religiosos. Embora existam várias interpretações bíblicas, a concepção contemporânea do purgatório teve origem no século XII, com “O Purgatório de São Patrício” marcando simbolicamente seu nascimento na literatura. Alexandr Sokurov, renomado diretor russo, é conhecido por sua vasta filmografia que abrange temas históricos e literários. Em “Conto de Fadas”, ele explora talvez sua abordagem mais ousada e experimental.
Ambientado no purgatório, o filme retrata conversas entre Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill. Entre provocações, lamentos e reflexões, eles aguardam à beira dos portões do paraíso para descobrir seu destino.
Combinando imagens de arquivo com a tecnologia deepfake, os primeiros minutos de “Conto de Fadas” surgem como um convite estranho e pouco acolhedor, semelhante a uma caminhada no escuro. É necessário tatear, adaptar-se e, só então, familiarizar-se com a proposta. Uma vez aceita — se aceita —, uma série de outras peculiaridades volta a desafiar nossa atenção, destacando-se o tom curiosamente jocoso com que Sokurov conduz os diálogos entre essas figuras tão singulares. O diretor escolhe retratar seus personagens de uma maneira que os humaniza, concentrando-se em suas facetas mais banais e mundanas, o que contrasta com a imagem imponente, ameaçadora e assertiva com que estamos acostumados a lembrar deles. Essas figuras, antes vistas como dotadas de grande poder, são agora apresentadas em interações que oscilam entre o medíocre e o ridículo.
Embora seja estranhamento divertido, a ideia se esgota rápido demais. Após trinta minutos, entra em um ciclo de sequências repetitivas e monótonas. Mesmo com uma duração breve de apenas 79 minutos, o conteúdo parece insuficiente para preencher adequadamente esse tempo. O destaque fica por conta do visual, que combina elementos sombrios e hipnotizantes, lembrando as ilustrações de “A Divina Comédia” feitas no século XIX por Gustave Doré. Esta escolha, tanto acertada quanto óbvia, faz sentido dada a influência de Dante Alighieri na popularização do conceito de purgatório.
Assim, Sokurov delimita o público-alvo para aqueles com conhecimento suficiente para compreender o contexto dos diálogos ou para os que, mesmo sem um conhecimento profundo da história, são cativados pelas imagens e pela abordagem inovadora. Esse é um risco comum ao experimentalismo cinematográfico, que, independente dos resultados, é sempre uma adição bem-vinda.