“Alma do Deserto”: doc retrata jornada de uma mulher trans indígena na busca pelo reconhecimento de sua identidade | 2025
O primeiro plano de “Alma do Deserto” mostra uma sombra a vagar pela superfície de um solo arenoso. Esse vulto, como qualquer outro, carrega consigo a imprecisão na identificação de seus contornos pela perspectiva de quem o vê em movimento. Assim, a imagem inaugural dessa produção colombiana-brasileira que acaba de chegar às nossas salas de exibição reflete, de modo bem expressivo, toda a luta empreendida pelo ser humano que o forma: a mulher transexual indígena Georgina Epiayu.
Dirigido por Mónica Taboada-Tapia, o longa foca na busca de Georgina por aquilo que, em tese, a tornaria uma legítima cidadã. Após ter a casa incendiada por vizinhos (“irmãos” nas suas tristes palavras) e precisar fugir para não morrer, ela é obrigada a retornar à região onde residiu boa parte de sua vida para finalmente obter um documento de identidade e, com isso, exercer seu direito ao voto. Ao acompanhar a personagem central durante seu árduo percurso, que se torna ainda mais pesado por se tratar de um idosa de setenta anos, o espectador entra em contato com as mazelas da inóspita região de Uribia, considerada a capital indígena da Colômbia, e de uma população entregue à miséria.
Nesse sentido, o abandono por parte da máquina pública, que impõe entraves burocráticos e retira benefícios friamente, acaba unindo pelo desamparo todos os habitantes do lugar, independente da identificação quanto ao gênero. A travessia de Georgina pelo deserto de La Guajira revela, então, para além de seu drama pessoal, um panorama social acerca das condições de sobrevivência de sua comunidade e da destruição resultante de práticas predatórias como a mineração.
Por isso, é até possível dizer que existe algo de “Vidas Secas”, clássico do nosso Cinema Novo, na peregrinação que se apresenta em tela, sobretudo na ampliação do escopo narrativo que abarca todo um cenário desolador a partir de uma experiência bem particular e na maneira como a aridez do ambiente se traduz também na linguagem empregada, seguindo (no caso da obra de Nelson Pereira dos Santos) à risca sua matriz literária. Não à toa, são muitos os momentos em que Georgiana é filmada caminhando por aquele território hostil, debaixo de sol forte e vento opressor, até encontrar um novo morador, com quem troca poucas – mas reveladoras – palavras até seguir novamente atrás do que almeja: reconhecimento dos seus civis básicos e respeito.
Vencedor do Prêmio Queer no Festival de Veneza, “Alma do Deserto” nos coloca diante de uma realidade dura e pouco vista no cinema: a da pessoa trans descendente dos povos originários americanos. Embora seja um documentário que registra o universo sobre o qual se debruça a partir de uma estrutura que remete a um modelo ficcional – o da jornada –, é perceptível a opção pela manutenção de um certo distanciamento capaz de evitar deslizes apelativos. Ainda assim, sua narrativa é forte o bastante para retirar das sombras uma figura corajosa e resistente, dando-lhe corpo e dignificando sua existência com um olhar empático, humano… muito melhor do que poderia fazer qualquer papel timbrado emitido em cartório.