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“Tudo o Que Você Podia Ser”: Um belo afago cinematográfico que faz do afeto um gesto de afirmação | 2024

Nos últimos anos o cinema mineiro vem reconfigurando a maneira como as minorias são representadas no cinema brasileiro. Geralmente retratadas (não raro exploradas) pelo viés da violência ou de um exotismo que, em certos casos, vinham como efeitos colaterais de uma desregulada necessidade de denúncia, ou, muitas vezes, atendendo às demandas comercias de quem percebia no público o interesse por obras cuja estética apenas reforçava estereótipos.

A classe operária de um modo geral, famílias negras ou membros da comunidade LGBTQIA+, só para ficar em alguns exemplos, sempre foram grupos sociais formados por uma massa anônima, que pareciam não serem compostas por pessoas fora de suas lutas coletivas, em sua maioria desprovidas de individualidade, numa abordagem que os reduzia a tal ponto de torná-los “meras” bandeiras tremuladas na forma de personagens. Recentemente, tem se tornado mais comum – e os jovens realizadores nascidos em Minas Gerais têm contribuído bastante para isso – obras que buscam aprofundar para além dos discursos afirmativos (sempre importantes, diga-se) os seres humanos que ganham vida em tela.

“Tudo o Que Você Podia Ser” chega como mais um ótimo exemplar dessa nova onda do cinema brasileiro que ousa observar pela lente do afeto aqueles que quase sempre são obscurecidos pelo filtro do preconceito ou do fetichismo. Logo na abertura, nos deparamos com uma cena que já deixa clara a proposta do longa. Nela, Aisha (Aisha Bruno em linda performance), uma mulher trans, brinca com o sobrinho recém-nascido sob os olhares carinhosos do irmão e da cunhada. Trata-se de uma despedida, mas por um excelente motivo: a conquista de uma vaga num curso universitário em São Paulo. A partir disso, vamos conhecer as outras integrantes de um quarteto de amigas que serve para Ricardo Alves Júnior (do excelente curta “Vaga Carne”) arejar a percepção que se tem (dentro de nossas produções, inclusive) acerca da rotina vivida por quem não se enxerga dentro de qualquer padrão através das batalhas cotidianas, dos sonhos e das realizações de pessoas cujas preocupações em quase nada diferem dos conflitos encarados pela maioria tida como cisgênero.

Antes mesmo do primeiro terço, a narrativa já descortina detalhes importantes – e que também extravasam os indivíduos – sobre cada uma das demais protagonistas: Igui (Igui Leal) decide fazer doutorado na Alemanha, Will (Will Soares) está às voltas com a perda do trabalho num bingo on-line e Bramma (Bramma Bremmer) segue sua vida com dignidade após descobrir que é soropositiva.

Após a exposição desses dados iniciais, o roteiro de Germano Melo vai focar na dinâmica afetuosa que liga essas quatro pessoas. Entre conversas que esbanjam naturalidade – desenvolvidas pelo diretor em parceria com o roteirista e as atrizes centrais – e o desejo de curtir os dias que antecedem a viagem de Aisha, existe uma mescla de momentos de sensível espontaneidade, como a brincadeira de verdade ou consequência em que se utiliza um consolo, a outros mais encenados, nos quais o projeto tenta deixar evidente que sua abordagem não é ingênua a ponto de ignorar situações nada fáceis encaradas pela maior parte das pessoas não-binárias. A resposta quando a bola de uma tende a baixar é uma terna e unida rede de apoio mútuo que não se abala: “Tem sempre uma que ajuda a gente a levantar.” ou “Eu nunca vou esquecer o que ela fez por mim.” são frases carregadas de uma gratidão genuína que perpassa cada interação.

Híbrido entre o ficcional e o documental, que vez ou outra utiliza frestas para reforçar um espectador voyeur que chega aos poucos num ambiente de muita cumplicidade, “Tudo o Que Você Podia Ser” mostra de maneira muito bonita como membros da comunidade LGBTQIA+ também podem (e devem) personificar aspirações acadêmicas e profissionais, estabelecer relações de amizade e familiares de maneira profunda e saudável, além de dar vazão a seus desejos sem ceder a exotismos. Tratando com absoluto respeito uma parcela estigmatizada da população brasileira e potencializado pelas atuações de um quarteto em total sintonia, o longa de Ricardo Alves Júnior é tudo o que essa nova estética do afeto pode ser.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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