“Sob as Águas do Sena”: Entre a sátira e o horror, longa leva o caos para a capital francesa | 2024
Nos filmes de monstros, o monstro nunca é apenas um monstro. Muitos clássicos do cinema e da literatura utilizam essa metáfora para refletir questões existenciais ligadas aos seus respectivos contextos históricos. “Frankenstein”, escrito no século XIX, dentre muitas outras coisas, aborda os limites da ciência, enquanto “Godzilla”, criado na década de 1950, representa o trauma coletivo da sociedade japonesa pós-bomba atômica. Exemplos mais contemporâneos seguem essa mesma lógica, como “Cloverfield” (2008), que evoca os medos e a paranóia norte-americana pós 11 de setembro.
Em “Sob as Águas do Sena”, a figura escolhida é o tubarão, criatura elevada à condição de mito do horror graças a Steven Spielberg. Desde o lançamento em 74, o predador gerou um número incontável de filmes derivados, onde ele é o vilão. Esses filmes quase sempre trazem um comentário social, como o próprio original que dialoga com o negacionismo e os interesses financeiros que se contrapõem à ciência. Outros apostam na sátira, como a franquia “Sharknado”, que desde 2013 já conta com seis sequências, cada uma mais absurda que a anterior. Dito isso, a mais nova produção francesa da Netflix parece escolher um caminho intermediário, apostando no absurdo e no escatológico, dentro de um contexto político muito específico.
Na trama, um tubarão gigante aparece inexplicavelmente no rio Sena às vésperas de uma competição de triatlo. Para evitar uma catástrofe, a cientista Sophia (Bérénice Bejo) precisa enfrentar os traumas de seu próprio passado enquanto tenta convencer as autoridades do perigo iminente.
Paris é a cidade mais facilmente reconhecível no mundo, até mesmo para quem nunca a visitou. Palco de muitos eventos, monumentos e símbolos históricos, a Cidade Luz está profundamente fixada no imaginário popular. Em “Sob as Águas do Sena”, a infraestrutura icônica do local é muito bem explorada, e essa característica não se limita ao rio que dá título ao filme. A Torre Eiffel aparece constantemente para nos lembrar onde estamos, e é nas catacumbas de Paris que ocorre a sequência mais tensa do longa, potencializada pela claustrofobia desse subterrâneo sombrio. Os efeitos visuais deixam transparecer o baixo orçamento, mas consciente disso, as cenas fazem bom uso das sombras para esconder as imperfeições. As sombras geralmente potencializam o medo do desconhecido, todavia, o filme perde esse elemento surpresa ao introduzir a criatura na luz do dia nos primeiros cinco minutos.
A capital francesa está prestes a sediar as Olimpíadas, e é difícil imaginar que o timing do lançamento dessa produção seja uma mera coincidência. O projeto de despoluição do rio tem gerado controvérsias, e no filme, a figura caricata da prefeita reforça essa provável indireta. No entanto, é curioso como esse plano mais politicamente relevante é relegado à caricatura, enquanto os momentos mais impactantes se resumem à violência despropositada — o tal “choque pelo choque”. Embora a violência possa ser importante para qualquer narrativa, essa abordagem voltada para o entretenimento abre margem para muita problematização. Se o filme tenta se vestir de subversivo para tecer um comentário crítico ou simplesmente investir no escárnio, fazendo piada da situação, no fim falha miseravelmente em ambos os casos.