“Rivais”: Avassalador, filme de Luca Guadagnino faz do interesse humano o principal certame da própria perversão | 2024
Ela não vem, Patrick
Seus olhos e seus olhares, milhares de tentações
Existem inúmeras formas de abordar o sexo no cinema. Em tempos de facilitação, onde a pornografia está a alguns cliques de distância em um dispositivo que não sai da mão das pessoas, é cada vez mais difícil encontrar algo que seja verdadeiramente erótico. O vulgar é importante, necessário inclusive, mas vem tomando insistentemente um lugar que pertence à sensualidade. Alguns cineastas entendem isso e se ocupam não apenas em expor corpos nus se contorcendo na doce agonia do coito (como diria Leslie Winkle), mas também em proporcionar experiências sensoriais que provoquem emoções conflitantes no público ao simultaneamente seduzi-lo e repulsá-lo.
Entre os anos 1960 e meados da década de 2000, os filmes do diretor italiano Tinto Brass instigavam seus expectadores através de cenas explícitas carregadas de um erotismo fetichista e, por que não?, simbólico também. Sua abordagem se tornou referência ao fazer do choque uma ferramenta narrativa eficaz para a percepção da obra, como um elemento a ser carregado para consideração pela plateia no período pós-sessão. O cineasta também italiano Luca Guadagnino, como um reflexo desse tempo muito pornô e pouca sensualidade, adota uma premissa similar mas adaptada à demanda atual. Há nudez em seus filmes, claro, mas as cenas que permanecem na memória são aquelas onde o implícito evoca os mais diversos sentidos, onde o não mostrado levanta pensamentos acerca do que está fora do alcance da audiência. Então, a grosso modo, me permito afirmar que “Rivais”, último lançamento de Guadagnino nos cinemas, é facilmente o filme mais erótico da temporada – mesmo estando longe de ser pornográfico.
Meninas são tão mulheres, seus truques e confusões
Existem estudiosos no comportamento humano – cientistas, para ser mais exato – que observaram o fenômeno do amadurecimento infantojuvenil e constataram que as meninas, em sua maioria, se tornam mulheres bem antes de os meninos se tornarem homens. Aqui somos apresentados a uma mulher (desde cedo ciente do poder manipulativo que possui) disputada por dois homens, que são na verdade dois meninos em corpos de adultos. Uma competição adolescente permeia a relação dos três em uma trama onde certo e errado são separados por uma linha tão fina e frágil que, em essência, não dá para fazer distinção entre tais lados. Aqui todos são bons e todos são perversos, ambos vilões das histórias uns dos outros em um mesmo tempo que são seus próprios heróis. Um triângulo amoroso formado por pessoas frágeis e desprezíveis, mas igualmente fascinantes e humanas.
Tash Duncan, Patrick Zweig e Art Donaldson interpretados respectivamente por Zendaya, Josh O’Connor e Mike Feist, são personagens brilhantemente elaborados e hipnoticamente decifrados em sutilezas cirúrgicas por sua trinca de atores. Dilemas e inseguranças são trabalhados em minúcias que tentam se esconder nas tantas trocas de olhares, onde quem realmente são se revela enquanto operam os próprios ressentimentos. Através da genialidade interpretativa da trindade escolhida como protagonista aqui, Guadagnino brinca com a percepção sobre tais personagens, jogando o público – e seu constante julgamento de valores – de um lado para o outro como se fosse uma bola de tênis; e ainda vai além ao representar isso de forma literal na tela. “Rivais” é um filme provocativo, evocando uma montanha russa de emoções e sensações enquanto é assistido.
Então são mãos e braços, beijos e abraços, pele, barriga e seus laços
E também, principalmente, pescoços. Muitos pescoços. Guadagnino interpela os personagens através da exposição e da movimentação dessa zona sensível para arrazoar suas fragilidades em closes e ângulos que por vezes adotam uma cadência alternada; ora mais lentamente, em slow motion, como se para apreciar a vulnerabilidade desvendada; ora de forma mais enérgica, para enfatizar a tensão (e o tesão) que se ergue cadenciadamente à medida que revelações são feitas. Seja no pescoço aberto a ser mordido, chupado e lambido pelos dois lados ao mesmo tempo ou no pescoço tenso, que não se expõe à câmera mesmo enquanto todos ao redor olham de um lado para o outro acompanhando as jogadas de tênis (evidenciando uma opressão densa e desconfortável perante o confronto que transpõe o esporte), o pescoço é o principal recurso de estudo de Guadagnino aqui, mesmo que nas entrelinhas.
Poucas vezes um filme com temática esportiva portou uma tensão sexual tão latente. Coincidentemente, a referência nesse âmbito era “Match Point”, de 2005, dirigido por Woody Allen (para mim um dos três melhores de sua carreira), onde o tênis também é o plano de fundo para alegorias de conflito interpessoal e conjugal. Nele vemos os personagens de Jonathan Rhys Meyers e Scarlett Johansson vivendo uma relação egóica de enganos e traições onde ambição e cobiça são combustíveis que movimentam a história. Aqui em “Rivais” isso é explorado no embate que se fragmenta durante todo o filme, intercalando cenas de diferentes tempos da vida dos três para explicar como isso reflete a disputa que ocorre na quadra – e por “disputa” entenda pelo troféu ou pela garota.
Garotos não resistem os seus mistérios, garotos nunca dizem não
A entrega às descobertas e confissões que Art e Patrick experimentam com Tash são vetor de um rancor excitante e tangível, mas esse feito só foi alcançado graças ao exímio pudor técnico que permeia a produção. Um dos maiores trunfos para apreciação, além das performances avassaladoras dos protagonistas, é a construção da identidade visual deles através do departamento de maquiagem e cabelo. Com simples pontuações de penteado e tamanho, além das construções de barba e figurino (trabalho de Jonathan Anderson), o filme situa o público sobre qual época se passa a cena mesmo em meio a montagem parcial, deliciosa e propositalmente caótica de Marco Costa, que transita entre as eras do trisal não assumido e proporciona uma vertigem vigorosa ao trabalho de fotografia feito por Sayombhu Mukdeeprom, que colabora em muito para aguçar o vislumbre que Guadagnino procura proporcionar. Isso sem falar na trilha quase sempre diegética que Atticus Ross e Trent Reznor incorporaram para ditar ritmo e impor ansiedade.
E assim, como um jogo de imprevisibilidade onde se torna uma tarefa ingrata tentar adivinhar quem será o vencedor, se construiu um enredo épico em torno de uma destruidora de lares e seus dois garotos brancos. Uma odisseia de queda e ascensão provocada pelo atrito ordinário da usança dos próprios interesses, onde três indivíduos poderosos, cada um ao seu modo, permanecem presos a um passado que permanece ao invés de efetivamente passar. “Rivais” já é uma das maiores e melhores experiências cinematográficas de 2024, tanto pelo descarrilamento emocional quanto pela qualidade da construção visual e narrativa. É um filme sobre esporte, é um filme sobre ressentimento, é um filme sobre inimizades e amizades sinceras; mas acima de tudo, um filme sobre dois homens que perto de uma mulher são só garotos.