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“Orlando, Minha Biografia Política”: Inspirado na obra de Virgínia Woolf, doc é criativa carta-tratado sobre diversidade e direito de existir | 2024

Publicado em 1928, “Orlando, Uma Biografia” se localiza num lugar de destaque na obra da renomada escritora e ensaísta britânica Virginia Woolf. Espécie de biografia ficcionalizada da poeta e amiga Vita Sackville-West, este talvez seja um dos trabalhos mais populares e celebrados da autora, conhecida por elaborar tramas bastante desafiadoras, que já apontavam para aspectos fundamentais da pós-modernidade literária e comportamental. Não à toa, o personagem-título, um ser imortal que à certa altura de uma viagem à Turquia acorda com um corpo feminino, personifica a entrada num século de intensas transformações e acaba por representar também a chegada de um período de profundas discussões sobre o que há de indefinível na sexualidade humana.

Quase um século após o nascimento do livro, o também escritor e filósofo transgênero Paul B. Preciado decide escrever uma carta em forma de documentário para dizer (e mostrar) a Virgínia que seu Orlando hoje habita em milhões de pessoas espalhadas pelo mundo que não se identificam com qualquer classificação de ordem binária. Na dinâmica proposta pela narrativa de “Orlando, Minha Biografia Política”, diferentes atores encarnam a figura do aristocrata elisabetano em seu percurso por múltiplas eras e territórios, tendo sempre em comum o questionamento acerca dos padrões centrados em nomenclaturas e modos de ser, majoritariamente vinculados à dicotomia masculino-feminino, que encarceram corpos dentro preceitos sociais sustentados mediante a doses cavalares de preconceito e hipocrisia.

Através de uma mise-em-scène que beira o pastiche, Preciado faz uso de diversos elementos teatrais para reforçar a tese de que todos, de alguma forma, estão interpretando personagens dentro do jogo social que nos é imposto. Dos pedaços de figurinos – que que criam um certo anacronismo – aos cenários que jamais se mostram finalizados, o aspecto fake é construído propositalmente pelo realizador que, mesmo deixando espaço para os tradicionais depoimentos que caracterizam a linguagem do documentário, não nos deixa esquecer que seu longa, assim como aquelas pessoas trans que ali se apresentam como Orlando, estão em constante metamorfose.

Encenando de forma bem criativa os inúmeros desafios que foram e ainda são enfrentados por homens e mulheres trans, “Orlando, Minha Biografia Política” faz valer o acréscimo do adjetivo no título e se apresenta como uma missiva-tratado sobre a diversidade e o direito de existir. Nesse sentido, não deixa de ser muito simbólico que, em dado momento, a importância do recebimento de um documento de identidade (ou prótese social, como alguém o nomeia) seja encarado como uma vitória gigante nessa luta por reconhecimento e cidadania. E ter Orlando à frente de cada nome real ali impresso, mesmo que vislumbrando um futuro utópico, não deixa de ser um belo gesto de gratidão a quem representou tanto. Certamente, esteja onde estiver, Virginia Woolf gostou do que leu.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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