“O Último Azul”: premiado em Berlim, longa encontra nos rios uma travessia poética rumo à liberdade | 2025

O cinema brasileiro, assim como grande parte do latino-americano, foi reiteradamente marcado pela sombra de regimes de exceção. Esse passado violento insiste em retornar como aviso, sobretudo em tempos recentes, quando a ascensão da extrema direita e a memória ainda fresca de governos autoritários reforçam a necessidade de constante vigilância. As formas de evocá-lo na tela são múltiplas, ora pela exposição direta da brutalidade, ora pelo recurso ao simbólico.
Em “O Último Azul”, a opressão não se manifesta em golpes ou gritos, mas na suavidade enganosa de rituais que parecem celebração enquanto pavimentam o caminho da submissão. Aos 75 anos, cada pessoa recebe uma medalha e tem a fachada de sua casa ornamentada como sinal de honra, numa encenação que promete o merecido descanso. Esse gesto funciona como prenúncio de um afastamento compulsório, já que os idosos são destinados a viver em colônias apartadas. Trata-se de uma distopia que se sustenta não pelo choque, mas pela normalização do controle.
Nada na travessia de Tereza (Denise Weinberg) se resolve de uma vez. A libertação amadurece no fluxo do rio, convertendo o deslocamento físico em experiência simbólica. A distopia, antes sufocante, abre brechas para uma utopia de caráter íntimo. Gabriel Mascaro, mesmo diretor do excelente “Boi Neon” (2015), desloca o imaginário dos “road movies”, tão associados ao cinema hollywoodiano, para uma ressignificação enraizada no norte do nosso país. Aqui são os rios que estruturam a vida e ditam o deslocamento. É nesse gesto que nasce um “river movie”, em que cada curva abre novas possibilidades para a personagem, enquanto a vigilância permanece como ruído de fundo.
Cadu (Rodrigo Santoro) é o primeiro a partilhar essa travessia. Surge retraído, quase um misantropo, e aos poucos revela as marcas de uma vida solitária, atravessada pelo desejo contido de reencontro com a ex-esposa. É com ele que Tereza conhece o caramujo da baba azul, criatura que carrega o maior traço de simbolismo do filme. A baba do animal quando pinga nos olhos provoca lampejos de futuro, que em momento nenhum se explicam, mas ainda assim transformam quem as experiencia.
Ludemir (Adanilo) surge como promessa de realização de um sonho, mas sua passagem, embora contenha alguns bons momentos, é a menos inspirada. Já a entrada de Roberta (Miriam Socarrás) agiganta o filme. Personagem de muitas camadas e vitalidade, acolhe Tereza sem anular sua autonomia. A relação que nasce entre as duas rejeita a infantilização da velhice e afirma, com delicadeza, o direito ao desejo, ao afeto e à parceria.
A distância afetiva entre gerações se desenha como herança. Tereza trabalhou muito e manteve pouca ligação com a filha. A filha repete o padrão com os próprios filhos. Muitas figuras encontradas no percurso de Tereza carregam esse pano de fundo. Gente levada à solidão por um mundo que exige sem trégua e, naturalmente, chama de descanso o dia do descarte.
Apesar da ordem aparente que o regime tenta sustentar, a corrupção se infiltra como rotina. Com Cadu, surgem em sinais de permissão e bloqueio no curso do rio e, quando Tereza questiona se ele faz algo errado, a resposta é seca: “todo mundo faz”. Com Ludemir, a breve passagem por um jogo do bicho revela como práticas ilícitas se naturalizam, entre o vício e o tédio. Já Roberta carrega a marca mais dura, obrigada a comprar a própria liberdade.
Escrito no céu, o destino parece promissor. “O FUTURO É PARA TODOS”, declara a aeronave que abre e fecha a história. O filme responde com a delicadeza de quem troca altitude por correnteza. Para todos é o anúncio. Para cada um é a coragem de seguir adiante.