“O Deserto de Akin”: Bernard Lessa cria parábola moderna à tentação através de trama que expurga revolta política | 2025
Não sei se consigo ser feliz aqui

Qual imagem te vem à cabeça quando você lê ou escuta a palavra deserto? Meu palpite, arrisco dizer, é de que você provavelmente pense em uma vastidão de areia à perder de vista, alcançando a linha do horizonte em um calor descomunal e anarmônico onde dunas se remoldam ao vento quente e incessante – devo confessar que esse conceito clássico à lá “Lawrence da Arábia” (1962, dir. David Lean) também me vem de imediato à mente. Contudo, em um quadro mais inclinado a alegorias teológicas, o cenário do deserto remete a uma prova de tentação; e é nessa linha, de um jeito bem peculiar, que o roteirista e diretor Bernard Lessa apresenta seu filme “O Deserto de Akin”, exibido na noite de abertura da 32ª edição do Festival de Cinema de Vitória menos de duas semanas antes de sua estreia em circuito comercial.
“O Deserto de Akin” pode ser interpretado, de maneira mais fácil e óbvia, como uma obra de desabafo e expurgo partidário. O roteiro de Lessa não se abstém de assumir posições para contextualizar a própria trama no tempo dos eventos reais que justificam sua existência, tendo como plano de fundo aos dilemas românticos do triângulo afetivo o encerramento do programa Mais Médicos, iniciado no governo Dilma e finalizado na gestão Bolsonaro. No entanto, sua trama não se limita a ser meramente política, e deve-se observar os subtextos para entender os conflitos internos que permeiam a vida de Akin enquanto ele lida com seus motivos (e tentações) tanto para sair do Brasil e retornar a Cuba quanto para permanecer em terras tupiniquins (e capixabas, vale destacar), perante o iminente cancelamento do programa.
O deserto se ergue de forma física, personificado pelas areias que o vento insiste em trazer para os ambientes internos, e de forma parabólica, fazendo uso inclusive da presença imagética da serpente. As cobras surgem pontualmente, acompanhando o arco narrativo principal quase como que em um paralelo bíblico. No primeiro momento, logo no início, uma delas aparece camuflada pelos ramos de um arbusto em um gramado, invadindo sonoramente a intimidade de um casal e interrompendo uma aparente tranquilidade, como uma paráfrase ao Éden e à expulsão do paraíso. Depois surge outra, no meio de uma estrada, quando Akin recebe a notícia do término do contrato de Cuba com o governo brasileiro, como se ela estivesse ali para chegar ao seu ouvido e tentá-lo como Lúcifer fez a Cristo no deserto, conforme descrito nos evangelhos. E depois, por fim, outra aparece se locomovendo na areia, em princípio abaixo da superfície, mas depois revelando sua face à câmera e, por consequência, ao público. Junto a isso está a definição final de Akin sobre permanecer ou retornar, com um posicionamento conclusivo sobre as tantas tentações a que foi exposto na quase 1h20 de duração que o filme tem.
Os possíveis paralelos bíblicos seguem, como o fato de Akin, assim como o Messias, ter assumido uma missão cujo propósito era salvar vidas – mas não vou me aprofundar muito mais nisso, uma vez que o deserto tangível também exerce influência na jornada desse recorte da vida do protagonista. Seja por seu nascimento na cidade angolana do Namibe, próxima a um deserto, ou pela menção à vila de Itaúnas, cidadezinha ao extremo norte do litoral do Espírito Santo que foi reconstruída após sua primeira e original construção ter sido engolida pelas dunas, tudo acaba se relacionando a areia. O deserto é o ponto da praia onde Akin (Reynier Morales) e Érica (Ana Flávia Cavalcanti) experimentam um momento íntimo, mas é também o constante limpar da areia que, de forma insistente e intrusiva, vez ou outra acaba tendo que ser manuseada em cena.
Pode-se ler também, de forma mais anacronicamente livre, que o deserto seja um aceno às solidões contemporâneas, onde indivíduos se sentem sós mesmo quando rodeados de pessoas. Junto a Morales e Cavalcanti, Guga Patriota dá vida a Sérgio e fecha a trinca que catapulta essa narrativa regada a forró, atendimentos públicos de saúde e trabalhos humanizados. Desse modo, Lessa exprime sua revolta política com requintes de intimidade em uma carta pública escrita pelas vias da arte, para apelar a uma consciência maior de seu público enquanto, em contagem regressiva, nos aproximamos de mais uma eleição presidencial.