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“O Aprendiz”: Sebastian Stan e Jeremy Strong são destaques da polêmica cinebiografia de Donald Trump | 2024

Existe um gosto amargo que fica na boca ao final da sessão de “O Aprendiz”(2024), especialmente se considerarmos que a obra foi estrategicamente lançada nos Estados Unidos, em outubro, há algumas semanas das eleições que definirão o futuro presidente do país. O celebrado diretor iraniano Ali Abbasi e o roteirista Gabriel Sherman traçam a trajetória de Trump a partir do momento disruptivo em que ele conheceu o advogado Roy Cohn em 1973. Naquela época, Trump tinha uma admiração pela forma como Cohn transitava no “high society” e pelo modus operandi que aplicava nas ações judiciais em que se envolvia. Ele não tinha escrúpulos e suas estratégias basicamente eram pontuadas por atrasar os atos processuais, chantagear e negar os fatos com convicção.

Na primeira parte do filme, somos apresentados a uma construção da persona Donald Trump (Sebastian Stan) mais humanizada. Explora-se mais a fundo a relação familiar, seu pai, Fred Trump (Martin Donovan), era implacável e projetava Donald com orgulho como seu sucessor, mas rebaixava seu outro filho Freddy Jr. (Charlie Carrick), que havia se tornado piloto da Companhia aérea TWA e era alcoolatra. Fred pai era do ramo imobiliário e construiu um império na construção civil, tendo iniciado sua história de sucesso construindo e vendendo casas para famílias de baixa renda no Queens nos anos 20. A expansão do mercado nova-iorquino imobiliário alavancou o negócio da família Trump e o filme até aborda um dos escândalos, já na década de 70, em que Fred e Donald são acusados de discriminação por se recusarem a deixar que negros e porto-riquenhos alugassem seus apartamentos. Uma série de outros enroscos fiscais começam a pipocar nesta fase da condução dos negócios por Donald Trump, e aí que entra em cena os serviços do advogado Roy Cohn, um ás na arte da dissimulação e das estratégias não ortodoxas para vencer causas judiciais.

É interessante acompanhar a evolução do personagem de Donald Trump ao longo do roteiro, um aprendiz que inicia sua jornada cru em busca de um mentor que possa ajudá-lo a navegar judicialmente nos mares turbulentos da construção civil e ao mesmo tempo se misturar com figuras proeminentes da alta sociedade nova-iorquina. Roy Cohn (Jeremy Strong) cai como uma luva nas ambições de Trump, não só ele era um advogado influente como era ligado a diversas figuras importantes da época. Apesar de Cohn ter sido homossexual, havia namorado e pedido algumas vezes em casamento a jornalista e personalidade americana Barbara Walters. A relação nunca foi para frente…

À medida que Cohn vai influenciando a vida de Donald Trump, desde o modo de se vestir até estratégias ilegais de como evadir taxação fiscal de maneira bem-sucedida, o público acompanha este processo de maneira dinâmica pelo diretor Ali Abbasi. Sua direção marcante pode ser percebida nas linguagens que utiliza através de sua câmera, em momentos filma como se estivéssemos assistindo a um reality show, com sua câmera inquieta e com zoom in destacando o rosto de Trump ou Cohn. A primeira metade do filme é um show à parte do ator Jeremy Strong, que já havia conquistado o público com sua interpretação inesquecível do milionário Kendall Roy na avassaladora série da HBO “Succession” (2018-2023). Strong entrega uma das melhores atuações do ano, conquistando o público não só pela forma como se dedica intensamente para seus papéis dramáticos, mas pela maneira que adota trejeitos marcantes ou o modo particular em que Cohn falava com as pessoas, quase em tom monocórdio e professoral. O filme nesta primeira parte é dele.

A inversão de poder é aos poucos percebida à medida que Trump vai literalmente sugando toda a cartilha antiética e de manipulação de Cohn. É aí que a atuação de Sebastian Stan cresce e ele permite mostrar um Trump que foge de uma construção caricatural, mas que evoca trejeitos sutis do que viria a ser o Trump de atualmente, quase um personagem de ficção com suas afetações e excessos. Stan já havia mostrado sua veia camaleônica ao incorporar de maneira impressionante o roqueiro Tommy Lee na série “Pam & Tommy” (2022), e aqui acerta novamente com sua composição assombrosa do homem que viria a se tornar o 45º Presidente dos Estados Unidos.

A passagem dos anos 70 para os anos 80 pode ser sentida na eficiente transição de cenários e locações mostrando a revitalização de uma Nova Iorque decadente e a expansão da fome imobiliária de Trump para se tornar um ás dos imóveis de luxo, lançando empreendimentos faraônicos perto de cartões postais da cidade como um hotel do lado da Grand Central Station ou a Trump Tower na Quinta Avenida. Palmas também para a figurinista Laura Montgomery que consegue capturar os estilos e excessos da época, principalmente com os figurinos de Ivana Trump (Maria Bakalova). Por falar em Ivana Trump, a relação entre ela e Donald é abordada e até ganha destaque com um bom tempo de tela, mas a cena que realmente ofuscou o filme e causou a fúria do verdadeiro Donald Trump foi a cena terrível de estupro que Abbasi não omite em sua obra. A tal cena teria bebido no relato da própria Ivana no livro “Lost Tycoon: The Many Lives of Donald J. Trump”, do autor Harry Hurt III.

“O Aprendiz” não chega a abordar a presidência de Trump, mas dá pistas do que viria a acontecer em um futuro até então inimaginável em que ele chegaria ao Cargo Executivo mais importante do país. Lá pelo terço final, o filme perde fôlego, mas nada que comprometa o valor da obra. É uma cinebiografia que se destaca por não poupar as falhas e defeitos sérios do cinebiografado, ao contrário de outros exemplos como a biografia de Amy Winehouse, “Back to Black” (2024), que tenta suavizar o calvário e deixar a trajetória da artista mais leve, apesar de sabermos que foi o oposto.

Marcello Azolino

Advogado brasiliense, cinéfilo e Profissional da indústria farmacêutica que habita São Paulo há 8 anos. Criou em 2021 a página @pilulasdecinema para dar voz ao crítico de cinema e escritor adormecido nele. Seus outros hobbies incluem viagens pelo mundo, escrever roteiros e curtir bandas dos anos 80 como Tears For fears, Duran Duran e Simply Red.

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