“Niki de Saint Phalle”: cinebio carrega nas tintas do trauma ao retratar vida conturbada da artista plástica franco-americana | 2025

A primeira cena de “Niki de Saint Phalle” já indica o prisma pelo qual a cinebiografia observará a famosa artista plástica franco-americana. Nela, temos a personagem-título, em close, num ensaio fotográfico no período em que ela trabalhava como manequim, quando um dos holofotes que a ilumina estoura, fazendo com que metade de seu rosto seja tomado por uma sombra. Dessa forma, o longa dirigido por Céline Sallette expõe a intenção mergulhar no que há de mais obscuro na vida de uma mulher que precisou lidar com um terrível trauma para, enfim, conseguir se estabelecer como indivíduo e como ser criativo.
Em seu início, “Niki” (no original) escolhe o caminho mais confortável ao narrar os acontecimentos mais significativos na trajetória pessoal de alguém que se destacou numa fase de transformação cultural na Europa após a Segunda Guerra Mundial. O enredo faz questão de pontuar a maneira como uma mulher que, vindo de uma origem aristocrática, se vê adequada aos mandamentos do patriarcado – com casamento precoce e filhos – para, em seguida, adentrar no pantanoso território de sua infância. É na batalha contra as sequelas deixadas pelos abusos cometidos por seu pai, que afetariam profundamente sua saúde mental quando adulta, que a figura interpretada com muita competência por Charlotte Le Bon (a Chloe da terceira de “The White Lotus”) vai descobrir formas de se libertar de múltiplas prisões.
Boa parte da duração do projeto se detém no período posterior à fuga de Niki para a França com marido e no seu enfrentamento com esse monstruoso fantasma interno. Das primeiras manifestações de paranoia, até o aprofundamento de sua depressão – que acabou culminando em tentativas de suicídio –, o roteiro escrito por Sallette e Samuel Doux parece, a certa altura, disposto a fazer da artista um símbolo que representa o horror (e seus efeitos devastadores) que o machismo impõe a inúmeras mulheres, não importando sua origem ou o meio que frequentam. Cenas como a do embate com o diretor do sanatório onde ficou internada confirmam uma rede de proteção da qual muitos homens poderosos se beneficiam, peso temático este que só encontra contrapartida nos raros momentos de leveza em que ela está na companhia dos amigos que moravam nas proximidades de seu ateliê.
Tendo feito sua estreia mundial na mostra Un Certain Regard do Festival de Cinema de Cannes de 2024, “Niki de Saint Phalle” parece não se inspirar no estilo da artista que retrata, o que lhe confere um frescor estético bastante rarefeito. Fora as belas conexões estabelecidas a partir do uso da tela dividida, o que temos aqui é mais uma cinebiografia que se concentra bem mais no aspecto factual – e a ausência de suas telas em cena devido à proibição da família só aumenta a sensação – do que na captura de uma essência. Por tudo o que enfrentou e dada sua influência como artista, ícone da moda e ativista, Niki merecia mais.