Festival do Rio 2024: Emilia Pérez, de Jacques Audiard | 2024
Com elenco entrosado, longa premiado em Cannes é deliciosamente pop e altamente político
A primeira mulher eleita presidente no México tomou posse no último primeiro de outubro depois de uma corrida conturbada naquelas terras. Claudia Sheinbaum assume em um momento em que os mexicanos estão sofrendo mais do que nunca com a violência do crime organizado e com um pesado déficit na segunda maior economia da América Latina. Se eu não fosse altamente cético com respeito a dons premonitórios, eu diria que Jacques Audiard (“Ferrugem e Osso”, 2012) possui algum tipo de clarividência por mostrar a poucos dias das eleições presidenciais mexicanas sua mais nova obra em Cannes, que apresenta algumas coincidências com o momento presente daquele país, onde uma mulher precisa enfrentar o rastro de violência deixado pelo tráfico.
Ocorre que, é extremante simbólico que “Emilia Pérez”, que foi premiado nesse importante festival e é o filme de abertura da 26ª edição do Festival do Rio, chegue num momento como esse até nós, já que a trama, além de ser feminista e altamente política, também trata da reinvenção de uma mulher que vira a chave de uma vida inteira propagando a violência para começar a fazer justiça a partir de seus próprios impulsos e recursos, dinheiro esse que veio de uma pá de crimes. Mas claro, o filme de Audiard tem tantas nuances e abraça tantos subtemas que fica difícil condensar tudo sem entregar alguns detalhes. É incrível, inclusive, como o realizador consegue tratar tantas coisas e servir um trabalho atraente e coeso. É oportuno dizer que “Emilia Pérez” também mistura gêneros, como musical, drama e policial, e é nessa mistura onde a trama surpreende mais.
O longa companha Rita (Zoë Saldaña) uma advogada renomada de um grande escritório, cuja função é libertar criminosos, em vez de levá-los à justiça. Um dia, ela recebe uma proposta inusitada: Manitas (Karla Sofía Gascón), um perigoso líder de cartel, a contrata para ajudá-lo a se aposentar de seus negócios, desaparecer do mapa e tornar-se uma mulher.
Contraditoriamente, Rita (Zoë Saldaña brilhante em cena) começa a colocar em ação seu idealismo, já que até então precisou ceder à corrupção para manter seu emprego. É inclusive no segundo para o terceiro ato, quando o filme assume sua porção política, onde a trama conquista de vez. Ao apresentar o drama dos desaparecidos pelo tráfico e a reinvenção de uma mulher que também começa um processo de redenção ao se tornar a voz dos invisíveis, a produção ganha ainda mais pontos pelo bom equilíbrio de tantos ‘pratos’, assim como tantos gêneros. É importante mencionar que o musical não interfere na trama policial, pelo contrário, funciona para jogar ainda mais luz nos acontecimentos dramáticos que vêm após a transição de Manitas.
Outro ponto alto, que colabora muito para a vertente musical do longa, é a montagem de Juliette Welfling, que traz um tom pop e fresco, tão pulsante quanto as reviravoltas propostas no roteiro feito a cinco mãos, que além de Audiard ainda tem a assinatura de Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi, Léa Mysius e Boris Razon. “Emilia Pérez” não só dá voz às mulheres em sua trama, como também na escolha do protagonismo ao elenco feminino, que ainda conta com performances louváveis de Gascón, Adriana Paz e Selena Gomez. Fica nítido que os homens em cena só servem de escada para suas protagonistas brilharem. Demoramos inclusive a identificar que Edgar Ramírez é um desses personagens, que tem sua função delineada por conta da ação de uma mulher.
“Emilia Pérez” deve chegar com tudo na temporada de premiações. Não somente pela grandeza de sua produção como pela importância dos temas que propõe; como as questões de gênero, da violência contra a mulher, e para além do palpável, aproveitar as segundas chances que a vida vez por outra nos oferece.