Festival do Rio 2024: “A Garota da Vez”, de Anna Kendrick | 2024
O gênero true crime tem ganhado popularidade de forma expressiva nas últimas décadas, especialmente com o advento das plataformas de streaming e dos podcasts. No entanto, o fascínio por esse tipo de narrativa não é um fenômeno recente. Desde o surgimento da prensa de Gutenberg, materiais impressos já retratavam crimes violentos, e, na Inglaterra do século XIX, a figura icônica de Jack, o Estripador, consolidou-se como um marco cultural. Apesar das diversas razões que explicam o interesse pelo tema, o público de true crime se mostra numeroso e bastante fiel.
Um dado intrigante é a quase total ausência de mulheres como autoras dessas histórias, o que pode estar relacionado ao fato de que elas são as principais vítimas. Essa predominância está associada a diversas razões, como as motivações de muitos assassinos, que frequentemente envolvem crimes de caráter sexual ou o desejo de controle e poder. Com essas narrativas historicamente sob o domínio masculino, torna-se evidente que o olhar lançado sobre os acontecimentos, assim como a crítica ao sistema, foca predominantemente no sensacionalismo midiático, na incompetência judicial e no descaso das autoridades policiais. Raramente são feitas análises que contemplem recortes de gênero ou raça.
“A Garota da Vez” se apresenta como um contraponto necessário, abordando esses temas sob a ótica do machismo estrutural, que na época retratada (e ainda hoje) contribuiu para a perpetuação de diversos crimes. O filme expõe como essa estrutura patriarcal não só intensifica a vitimização das mulheres, mas também molda a forma como suas histórias são narradas e consumidas pela sociedade.
Na trama, acompanhamos Cheryl Bradshaw (Anna Kendrick), uma jovem aspirante a atriz vivendo em Hollywood, que, em busca de visibilidade para sua carreira, relutantemente aceita participar do famoso programa de encontros The Dating Game. Entre momentos cômicos e tensos durante o programa, Cheryl desconhece que um dos pretendentes, Rodney Alcala (Daniel Zovatto), é na verdade um perigoso serial killer, responsável por uma série de crimes que aterrorizavam os Estados Unidos na década de 1970.
O filme marca a estreia de Anna Kendrick na direção e, embora esse começo seja promissor, alguns aspectos técnicos revelam uma autoria ainda em processo de amadurecimento. O principal problema reside na montagem: ao tentar reconstruir os eventos, o filme utiliza uma série de saltos e retornos temporais que acabam gerando sequências confusas, comprometendo, por exemplo, o desenvolvimento dos personagens, especialmente o de Rodney Alcala. Apesar da boa atuação de Daniel Zovatto, o antagonista é desenvolvido de maneira superficial, sendo retratado somente como uma ameaça, sem que suas complexidades sejam devidamente exploradas. Ainda que seja compreensível que a trama foque nas personagens femininas, a construção de Rodney não faz jus ao tempo de tela dedicado a ele.
Embora o filme apresente falhas na estruturação dos acontecimentos, ele compensa com trechos extremamente inspirados. Um exemplo disso é a cena no programa de TV, onde Cheryl consegue superar as limitações impostas pela produção, tomando liberdades que a empoderam diante dos dois públicos — tanto o da trama quanto nós, o espectador. Tudo é conduzido por um texto afiado, repleto de ironias, boas sacadas e críticas precisas aos envolvidos, inclusive ao apresentador. Outro destaque é a perseguição no estacionamento durante a madrugada, que, sem recorrer a gritos ou correria, constrói uma tensão angustiante apenas com o jogo de luz e sombras. Ainda sobre o uso dos enquadramentos, as escolhas do que mostrar e sugerir são excepcionalmente acertadas. Ao contrário de muitos filmes em que a morte é exibida de forma explícita e o ato se transforma quase em um fetiche, Anna Kendrick demonstra uma sensibilidade ímpar, sendo plausível inferir que sua perspectiva feminina tenha exercido uma influência na maneira como os assassinatos são retratados.
Entre pequenos deslizes e acertos excepcionais, “A Garota da Vez” se estabelece como um ponto de partida auspicioso na carreira de Anna Kendrick como diretora. Além de enriquecer o panorama do true crime, o filme traz uma perspectiva diferenciada, relevante e necessária para um subgênero em constante expansão.