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Festival de Cinema Europeu Imovision: “Misty – A História de Erroll Garner”, de Georges Gacho

Erroll Garner foi um dos pianistas mais singulares e inventivos do jazz moderno. Autodidata, avesso a convenções e dono de uma linguagem rítmica absolutamente pessoal, conquistou prestígio internacional mesmo sem saber ler partituras, um feito que revela o alcance intuitivo de sua genialidade. Retratar sua trajetória, portanto, impõe desafios desde o início. Como traduzir em imagens a liberdade indomável de sua música? Georges Gachot, veterano em documentários musicais, não tenta responder a essa pergunta com a ousadia que seu biografado talvez exigisse. Em vez disso, entrega um tributo sóbrio e respeitoso, que, embora menos arrojado do que se poderia imaginar, reconhece com clareza a grandeza de um dos nomes mais importantes da música do século XX.

O formato adotado por Gachot é convencional, remetendo ao modelo de documentário televisivo. Imagens de arquivo, depoimentos de músicos, do biógrafo oficial e de figuras íntimas, como duas ex-companheiras e a filha que Garner abandonou ainda na infância. Essa composição narrativa cumpre seu papel informativo e oferece um panorama afetivo da trajetória do pianista. No entanto, ao seguir uma estrutura tão familiar, o filme deixa de explorar possibilidades mais inventivas, justamente o que não faltava à obra de Garner. Embora o piano esteja presente quase o tempo todo, pontuando a montagem com momentos de pura exuberância, há lacunas perceptíveis na escuta crítica daquilo que é dito, ou silenciado. A música conduz, mas não tenciona o discurso.

Também chama atenção o quase total apagamento das tensões sociais e raciais que marcaram a época em que Garner viveu. O contexto histórico, especialmente os anos de segregação, as lutas por direitos civis e o racismo estrutural enfrentado por músicos negros, é tratado de forma lateral, quando não ignorado. O filme retrata Garner como alguém à parte de seu tempo, quase imune ao entorno político e social. Trata-se de uma escolha criativa, talvez motivada pelo desejo de preservar sua aura enigmática.

“Misty – A História de Erroll Garner” tem o mérito de resgatar a memória de um artista extraordinário que, apesar de sua imensa popularidade em vida, foi parcialmente subestimado pelas narrativas tradicionais do jazz, mais voltadas a figuras associadas a rupturas formais ou discursos de vanguarda. Nesse sentido, o documentário cumpre um papel relevante, o de reintroduzir Garner às novas gerações, relembrando sua inventividade e sua contribuição inegável para o piano jazzístico. No entanto, ao optar por uma abordagem mais reverente do que investigativa, o filme evita se comprometer com as zonas de sombra que o cercam. O resultado é um retrato cuidadoso, mas reticente, que honra a obra, sem de fato confrontar o homem. Diante de uma figura tão indomável quanto Erroll Garner, talvez fosse preciso ir além do tributo: era necessário desafinar.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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