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Festival de Cinema de Vitória: “Presença”, de Erly Vieira Jr | 2024

Frágil

Eu não gosto dos livros de Tolkien. Para muitos isso pode parecer um insulto quase blasfemo, mas é a verdade. Não consigo apreciar a leitura de “O Senhor dos Anéis” como tantos outros o fazem, e confesso minha possível falta de maturidade para contemplar a obra em toda a sua magnitude. Os excessos presentes nas informações genealógicas denotam uma construção riquíssima da mitologia, mas aos meus olhos são meros caprichos que não colaboram em nada para o andamento da história e são, portanto, descartáveis.

Trazendo essa observação sobre a literatura tolkieniana ao filme da vez, devo dizer que para ser justo em meu parecer ao filme “Presença”, que foi escolhido para abrir a 31ª edição do Festival de Cinema de Vitória, tenho que colocar na mesa a possibilidade de minha perspectiva ser imatura perante aquilo que vi; e talvez seja melhor para os realizadores acreditarem nisso – mesmo embora eu mesmo não acredite, uma vez que assisti ao filme três vezes antes de dissertar sobre ele.

Reza uma lenda popular que somos responsáveis pelo que dizemos e não pelo que os outros entendem. Particularmente, discordo. Tal fundamento anula a possibilidade de qualquer potencial deficiência nas faculdades comunicativas do falante, imputando exclusivamente ao outro a responsabilidade pelo erro por sua provável má interpretação. Dito isso, parto do princípio de que qualquer comunicador é responsável sim, em dada medida, pelo modo com que os outros o entendem. “Presença” parece não se importar se o público vai entender ou não o que assiste e se esquiva de qualquer cuidado com a opinião de terceiros – e não estou falando de complexidades à lá Christopher Nolan, mas sim de coerência interna, da simples percepção do público sobre a intenção de quem está na direção do projeto. Erly Vieira se mostra desinteressado em tecer qualquer linha narrativa equilibrada e parece ter uma preocupação maior em agradar seus entrevistados do que em entregar algo minimamente profundo ao público.

A título de comparação, o filme que abriu o festival no ano passado (o excelente “Incompatível com a Vida”) mostrava diversas expressões e vivências sobre um mesmo tema e as costurava de modo que uma agregava à outra em uma crescente íntima e ao mesmo tempo comovente. Eram vários relatos sobre um mesmo assunto, conectados pela percepção de sua diretora, para a construção da coesão textual daquilo que era apresentado. Um filme político, debatendo religião e tabu, explorando um trauma compartilhado e transformando dor em arte. Aqui em “Presença”, contudo, temos pessoas falando sobre meia dúzia de vertentes artísticas diferentes (as suas próprias), em uma quase competição por espaço onde a harmonia textual é esquecida e nenhum relato tem peso justamente por não ter um aprofundamento que mostre a quê ele se vale. É um filme que se diz político, reacionário, libertador, religioso, artístico, mas que na verdade termina deixando um gosto amargo de egocentrismo.

O pronome “eu” é repetido à revelia durante seus setenta e um minutos. O filme parece ter sido montado – e mais ainda: realizado – para satisfazer uma demanda artística recheada de dezenas de autoafirmações. Os indivíduos que se apresentam e expõem suas visões sobre a arte parecem estar presos a um exercício egóico, onde evidenciam que a arte que fazem é exclusivamente para si mesmos – essa foi, pelo menos, a impressão que o filme me passou ao abordar suas personagens de forma quase autoritária e desinteressada em efetivamente alcançar o lado de cá da tela. Muito falam sobre si, suas ambições e seus sonhos, e pouco se estabelece de conexão com a realidade do publico. A obra se fecha com uma figura feminina solitária repetindo quase quinze vezes “eu respiro”, provavelmente de algum poema autoral, onde tenta transformar a simples ação de respirar em um ato revolucionário ao dizer, por exemplo, que respira pelas vítimas da pandemia ou para liberar o trauma coletivo. Não vou entrar nos méritos do poema em si, mas na abordagem do filme como um todo que termina por encaminhá-lo – e aos demais relatos -, voluntária ou inconscientemente, para um aparato puramente ególatra e individualista.

Frases como “assim serei cultuada”, “a água sou eu”, “é um projeto que fala de mim”, e “pode-se dizer que é um trabalho biográfico” fazem o filme parecer mais com uma vitrine de artistas que se peecebem como a própria arte do que com um cinema conceitual-arte propriamente dito. Não culpo os artistas que se prestaram ao projeto, mas à falta de tato na seleção e ordem dos recortes – e principalmente na exploração da temática, que se enviesa para um lado muito mais autocentrista e dificulta a identificação entre público e filme. Cinema é, obviamente, imagem e movimento. Mas também é narrativa. É maturação, é tempo, é progressão.

Cinema é transposição emocional, é racionalidade, é conexão. Isso tudo faltou a “Presença”. Talvez eu, no desbravar dos meus trinta e poucos anos, ainda seja imaturo para entender as mensagens do filme. Ou talvez, no fim das contas, o filme só tenha sido mal elaborado mesmo e não tenha em si argumentos que justifiquem a própria existência. De qualquer forma, tudo bem. A vida segue. “Presença”, pelo menos por enquanto, permanecerá na minha memória – mas não pelos melhores motivos. Uma pena. Sempre torço pelo sucesso do nosso cinema, mas nem tudo que diz reluzir é ouro.

Vinícius Martins

Cinéfilo, colecionador, leitor, escritor, futuro diretor de cinema, chocólatra, fã de literatura inglesa, viciado em trilhas sonoras e defensor assíduo de que foi Han Solo quem atirou primeiro.

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