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“Faça Ela Voltar”: longa renuncia ao mistério e encara o desconforto com olhos bem abertos | 2025

É curioso como certos filmes conseguem transformar a familiaridade em inquietação. “Faça Ela Voltar”, novo projeto dos irmãos Danny e Michael Philippou (os mesmos de “Fale Comigo”), aposta numa estratégia que, a princípio, soa contraditória. O filme expõe suas intenções desde o início, abre mão do mistério, mas ainda assim provoca uma sensação de desconforto crescente. O terror aqui não está no que se esconde, mas naquilo que permanece ao alcance até da percepção mais rasa.

Imagine uma tela cuidadosamente pintada. Suponha que esse quadro retrate uma festa super movimentada. À primeira vista, os olhos naturalmente se voltam para o centro, onde talvez esteja um casal que dança despreocupado, uma criança que brinca, um cachorro que corre ou até um garçom em vias de derrubar uma dúzia de copos equilibrados numa bandeja de prata. Pronto, a composição parece resolvida. Contudo, um olhar mais paciente começa a revelar detalhes que antes permaneciam nas sombras: um homem misterioso imóvel, que observa da sacada; uma mãe que, discreta, acompanha seus filhos à distância; uma figura solitária que parece meio oculta na margem da pintura. É nessa dinâmica entre o evidente e o que se esconde nas bordas que “Faça Ela Voltar” constrói sua lógica narrativa. A superfície é somente a parte mais visível do jogo. O verdadeiro interesse está no que se esconde discretamente nos contornos, mas que vai ganhando força quanto mais tempo dedicamos à observação.

A mise-en-scène é discreta e precisa. O movimento das margens em direção ao centro acontece de forma previsível e devagar, porém sem perda de ritmo. O filme mantém a agilidade, mesmo em movimentos mínimos, quase felinos. Grande parte dessa tensão vem da personagem interpretada por Sally Hawkins (Laura), cujo rosto é familiar ao grande público desde “A Forma da Água”. Mas se no seu filme mais famoso ela transmite uma doçura quase etérea, aqui Hawkins dá corpo a uma mulher marcada pela dor, por hábitos excêntricos e um desespero impossível de disfarçar sob qualquer máscara de controle. Seu gestual é descompensado, urgente, instável.

Do outro lado estão Andy (Billy Barratt), prestes a completar 18 anos, e Piper (Sora Wong), sua meia-irmã mais nova e deficiente visual. Com a morte recente do pai e Andy impossibilitado de assumir a guarda da irmã, ambos são encaminhados ao cuidado provisório de Laura. O filme não perde tempo tentando criar uma falsa sensação de acolhimento para depois desconstruí-la. O estranhamento já está posto desde o começo. Ao trio principal se junta Ollie (Jonah Wren Phillips), jovem de aparência estranha, também entregue aos cuidados de Laura, que com sua simples presença amplifica o mal-estar já estabelecido. Quando a narrativa decide enfim escancarar o horror, o impacto é brutal. A técnica de maquiagem é impressionante, e os momentos de gore provocam uma aflição física genuína. A transformação sofrida por certo personagem é feita com tamanha crueza que desviar o olhar é quase inevitável.

Mas nem tudo são flores. O objetivo da trama é tão claro e tão bem delimitado que, em certos momentos, outros personagens, seus traumas pessoais e até eventos do acaso parecem convenientemente encaixados apenas para sustentar determinado eixo. É como numa partida de xadrez em que peças decisivas são oferecidas sem resistência, como se um bispo fosse sacrificado com o mesmo descaso reservado ao peão. Não chega a comprometer o conjunto da obra, mas salta aos olhos de quem observa com mais atenção.

Ainda assim, talvez o que mais impressione seja a maneira como um filme tecido com peças gastas do horror (o luto, a casa isolada, o laço materno, a união entre irmãos, o ritual), consiga sobreviver ao desgaste extrair dele uma força inesperada. “Faça Ela Voltar” não reinventa o horror, e nem tenta. E assim, onde muitos filmes apenas repetem, ele cutuca, provoca, incomoda. Lembra que originalidade não garante nada, e que o “mais do mesmo”, quando bem feito, também machuca.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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