“Cloud – Nuvem de Vingança “: longa transforma o espaço digital em terreno fértil para a violência e a paranoia | 2025

Não é exagero afirmar que o J-horror produzido na virada do século ocupa um dos pontos mais altos da história do gênero, tendo sido amplamente referenciado e assimilado pela indústria global desde então. Nesse contexto, Kiyoshi Kurosawa consolidou seu nome como um dos principais arquitetos do terror moderno graças a filmes como “Cure” (1997) e “Pulse” (2001). Suas narrativas se movem em atmosferas rarefeitas, onde o desconforto se instala de forma orgânica, contaminando os gestos mais banais. Em “Cloud- Nuvem de Vingança”, Kurosawa mais uma vez desloca o horror do plano explícito para aquilo que permanece latente, insinuado, nunca plenamente visível. Aqui, ele revisita esse território de inquietação, mas o insere na lógica turva do comércio digital e das redes sociais, criando uma fábula sombria sobre violência e ressentimento.
Como em “Pulse”, o contato humano é mediado por telas mas, em vez do fantasma eletrônico do passado, o que assombra aqui é a lógica fria do capital digital. Yoshii Ryōsuke (Suda Masaki) é mais uma figura kurosawiana em busca de sentido. As cores que piscam na tela de seu computador, marcando vendas e lucros, funcionam como os sinais de um culto silencioso ao qual todos já parecemos pertencer. A casa de Yoshii ilustra um pouco isso, com sua arquitetura metálica e ausência de afeto e personalidade.
Kurosawa tem o dom de transitar entre gêneros sem jamais diluí-los. Em “Cloud- Nuvem de Vingança”, há momentos em que o espectador pode se perguntar se está diante de um drama social, de um thriller psicológico ou de uma fábula distópica. A progressão narrativa é sutil, com uma radicalização tratada como um processo que começa com pequenas concessões éticas e termina em violência ritualizada. Ao contrário do cinema ocidental, que muitas vezes glamuriza a reação, Kurosawa expõe sua banalidade. Os justiceiros que cercam Yoshii não são heróis nem vilões, apenas figuras desfiguradas por uma lógica de vingança.
Mesmo quando o filme abraça o surreal, Kurosawa mantém o desconforto dentro de uma lógica interna. A estranheza nunca soa gratuita, mas opera como extensão da desordem que atravessa toda a narrativa. À medida que a ação se aproxima do fim, a realidade parece dissolver, e o filme assume uma ambiguidade em que os gestos já não respondem à razão, mas a uma força difusa, fora de controle. Nada ali oferece certeza, apenas a impressão de que algo foi desencadeado e não pode mais ser contido.
“Cloud – Nuvem de Vingança” avança de forma lenta e corrosiva, escancarando aos poucos o desconforto de uma sociedade em que a violência já não precisa de motivações plausíveis, apenas de um terreno fértil. O colapso não começa com o disparo de uma arma, mas muito antes disso, talvez no instante em que a vida passa a obedecer aos termos de uma engrenagem que ninguém mais governa.