“Cidade; Campo”: Premiado no Festival de Berlim, longa coroa o talento de Juliana Rojas em belas histórias sobre memória e migração | 2024
O realismo fantástico não é um gênero comum no cinema brasileiro, que, tradicionalmente, sempre se sentiu mais à vontade exibindo narrativas com os pés bem fincados em elementos da realidade. Poucos são os momentos em que a nossa cinematografia deixou-se tocar pela fantasia e pelo sobrenatural. “Deus é Brasileiro” (2003), uma comédia, e “Nosso Lar” (2010), de temática espírita, são dois exemplos. No drama, porém, o apelo ao fantástico não parece contar com o entusiasmo dos cineastas. Não é caso de Juliana Rojas, diretora e roteirista de “Cidade; Campo“, longa que estreou nos cinemas no dia 29 de agosto.
Desde os seus primeiros trabalhos, Rojas sempre demonstrou interesse em contar histórias influenciadas por toques fantasmagóricos e sobrenaturais. No curta “O Duplo”, de 2012, a diretora abraça o assombro com a trama de uma jovem professora que, em certo dia, tem a sua aula interrompida quando seus alunos veem seu duplo pela janela da sala de aula. Ela tenta ignorar a aparição, mas o evento perturbador passa a impregnar o seu cotidiano e alterar sua personalidade. Nesse belo curta-metragem, Rojas trabalha muito bem com o terror psicológico e com a violência, incrementados por interessantes toques de surrealismo. Essa marca pessoal é repetida em “As Boas Maneiras” (2017), filme que conta com Marjorie Estiano no elenco.
Em “Cidade; Campo” o realismo fantástico é explorado em menor escala, porém ainda presente. A partir desse título dicotômico, a diretora explicou que “a motivação original para o filme veio de uma vontade de falar sobre deslocamentos. Sobre o local de origem e a adaptação em outro local. E da diferença de vivência entre cidade e campo, que são espaços com uma identidade, tempo e relação com a natureza completamente distintos”. De fato, migração e memória são temas que perpassam toda a trama, que envolve a história de duas mulheres e as relações com seus familiares e com os lugares a que pertencem.
Com dois arcos dramáticos que não se comunicam, o filme inicia com a jornada de Joana (Fernanda Viana), uma trabalhadora rural que tem a casa destruída pelo rompimento de uma barragem, forçando-a a mudar-se para São Paulo para morar com sua irmã Tânia (Andrea Marquee) e recomeçar a sua vida. Ao chegar à cidade grande, Joana é imediatamente tomada pelo estranhamento e pela angústia provocada pela incerteza do futuro. Sendo bem acolhida pela irmã, que vive com o neto, Joana rapidamente desenvolve uma relação de muito afeto com o menino, que tem curiosidade de saber como era a sua vida no campo. A simplicidade dos diálogos e a troca estabelecida entre esses dois personagens são de uma de beleza tocante, enriquecida pela atuação carismática de Kalleb Oliveira, ator mirim que interpreta o menino Jaime.
Preocupada em ajudar com as despesas da casa, Joana precisa arrumar um emprego e conta com a ajuda de Jaime, que a inscreve num aplicativo de busca por serviços de diaristas. À medida que recebe as chamadas, Joana realiza trabalhos de limpeza em apartamentos e escritórios, com jornadas de trabalho por vezes extenuantes, aliviadas apenas quando encontra com suas colegas num bar de karaokê. Nos poucos intervalos que possui, ela é tomada por devaneios que trazem à sua mente as memórias de sua vida no campo, exibidas em sobreposições de cenas que fazem o filme assumir um tom mais onírico.
O comentário social também está presente, expressado pela postura negligente da empresa, que não toma uma providência imediata quando uma das colaboradas denuncia ter sido vítima de assédio por um dos usuários do aplicativo, e exclui dos seus quadros uma das diaristas que incitou um movimento de greve por essa omissão. Essa cena é nitidamente uma crítica ao empreendedorismo precário, ausente de direitos, comumente chamado de “uberização” do trabalho, e sempre mais cruel com as mulheres.
O segundo arco dramático apresenta a história de Flávia (Mirella Façanha), que se muda para fazenda que herdou do pai, com sua companheira Mara (Bruna Linzmeyer). Ao encontrar o local em estado de quase abandono, logo ela percebe os esforços que seu falecido pai vinha realizando para manter a fazenda produtiva. A natureza inclemente fará com que Flávia tenha dúvidas sobre como dar seguimento ao legado do pai. Ao mesmo tempo, estar naquele lugar faz com que ela se reconecte com suas memórias familiares e com sua ancestralidade. A partir desse momento, o filme torna-se uma experiência sensorial e surrealista completa, que ganha ares poéticos com a linda e intensa cena de amor protagonizada por Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer. É uma cena muito simbólica, construída e conduzida pela sensibilidade de três mulheres, que mostram o sexo sob o olhar feminino, sem os estereótipos reproduzidos, voluntária ou involuntariamente, pela visão de uma direção masculina.
Com a segunda parte rodada em Ponta Porã, cidade do Mato Grosso do Sul que faz divisa com o Paraguai, o filme tem na natureza um verdadeiro personagem, que atua em comunhão de ações com os demais, sobretudo nos momentos em que os elementos fantásticos passam a dominar a narrativa. Esse gancho é inteligentemente utilizado pela diretora para criticar um braço do agronegócio que domina a região e contribui para o desiquilíbrio do meio ambiente. Isso é traduzido nas palavras do personagem Celino (Marcos de Andrade), afirmando para Flávia que o lugar tinha cheiro de morte.
Ambos os arcos não se concluem, deixando para os telespectadores o imaginário de possibilidades que podem ter afetado os destinos dessas mulheres em constante deslocamento, movidas por suas memórias, em busca de suas origens e de um lugar de pertencimento. O prêmio de melhor direção no Festival de Berlim é coroação do talento e da sensibilidade de Juilana Rojas.