“Caminhos Cruzados”: Longa discute liberdade e repressão nas margens da sociedade | 2024
O cinema contemporâneo é obcecado por verossimilhança e ainda que o conceito tenha se distorcido ao longo do tempo, essa discussão não é nova. Nos anos sessenta, Alfred Hitchcock já defendia que verossimilhança não se referia necessariamente à criação de situações que fossem absolutamente críveis ou factíveis. Para Hitchcock, o essencial era construir uma lógica interna coerente no universo do filme. Ele acreditava que, enquanto o público estivesse emocionalmente envolvido na história e acreditasse nas situações apresentadas, os eventos em si se tornavam secundários. Isso contrasta fortemente com certas visões hegemônicas atuais, que dão ênfase exagerada ao que muitos consideram realista, uma abordagem que, no mínimo, é reducionista — para não dizer ignorante — em relação à complexidade da natureza humana. Afinal, somos seres tão multifacetados que até as escolhas mais inesperadas ou esdrúxulas podem ser perfeitamente plausíveis dentro do vasto espectro de comportamentos humanos.
Isso nos leva a outro elemento que tem perdido espaço no cinema: o acaso. Eventos ou situações que surgem sem uma causa aparente, sem uma ordem previsível ou sem um propósito definido. Para aqueles obcecados em encontrar lógica em cada detalhe, a ideia de que certos acontecimentos possam ser fruto de sorte, coincidência ou circunstâncias aleatórias é inconcebível. Para esse grupo, “Caminhos Cruzados” talvez pareça menos realista do que um filme da Marvel.
Dirigido por Levan Akin, “Caminhos Cruzados” mantém-se firmemente enraizado na realidade nua e crua, retratando grupos marginalizados em uma grande metrópole sem glamourizar suas condições, mas dando visibilidade a uma complexa rede de cooperação e solidariedade entre eles. Paralelamente, acompanhamos uma dupla improvável em busca de objetivos distintos, mas que, ao longo do tempo, acabam se entrelaçando, ultrapassando fronteiras reais e simbólicas.
Na trama, acompanhamos Lia (Mzia Arabuli), uma professora aposentada que vive na Geórgia. Em busca de sua sobrinha Tekla, Lia recebe a notícia de Achi (Lucas Kankava), um jovem local, de que Tekla cruzou a fronteira e agora reside na Turquia. Determinada a encontrar sua sobrinha, Lia viaja para Istambul, onde mergulha nas profundezas da cidade, embarcando em uma jornada que é ao mesmo tempo física e espiritual.
A trama se passa na metrópole, mas os cenários se concentram nas vielas e espaços ocupados pelos mais pobres e marginalizados, como o pequeno conjunto de apartamentos onde vivem várias mulheres trans. Nesse contexto, a personagem Evrim (Deniz Dumanli), também trans e uma aliada ativa da comunidade, desempenha um papel crucial, dando apoio jurídico aos mais vulneráveis. À medida que a história avança, ela se torna uma figura ainda mais central, ajudando Lia em sua busca por Tekla. Na trajetória de Lia, nossa protagonista, surgem discretas pistas sobre seu passado, como sua paixão pela dança, revelada nos raros momentos de liberdade que se permite. Esses instantes sugerem uma repressão latente, provavelmente fruto dos costumes rígidos de seu país. O filme não explicita esses detalhes diretamente, ao menos não verbalmente; sua força está na comunicação visual. Já Achi segue um arco mais tradicional: o jovem rebelde que, aos poucos, revela seu lado mais doce e projeta em Lia seus anseios pela figura materna. Embora esse desenvolvimento seja um tanto previsível, a atuação é competente o suficiente para dar credibilidade ao personagem, tornando-o envolvente, mesmo dentro desse clichê narrativo.
Angustiante e por vezes melancólico, o longa é impregnado por uma resiliência que, embora brevemente alimentada por momentos de ternura, é constantemente desafiada pela dura realidade vivida pelos personagens. A beleza do filme reside precisamente nesse limiar entre encanto e desencanto, oferecendo uma narrativa que explora as complexidades da condição humana, especialmente daqueles à margem da sociedade, sem recorrer a idealizações. “Caminhos Cruzados” emerge como um exemplar bastante singular, agridoce por essência, onde o acaso e a busca por conexão moldam uma jornada que é tanto pessoal quanto universal.