“Alien: Romulus”: Alvarez honra Scott e Cameron ao resgatar ansiedade claustrofóbica característica dos melhores filmes da franquia | 2024
Andy, pode me contar uma de suas piadas?
Há um filme francês de 2017 que, embora pouco conhecido, foi um dos melhores dentre os tantos que vi no cinema naquele ano. O título auto explicativo de “Uma Dama de Óculos Escuros Com Uma Arma no Carro” já basta para apresentar o quão exótica é a obra, mas quero destacar o fato de que o elemento que catapulta a trama é a vontade que a protagonista tem de ver o mar. De igual maneira, com um abismo de narrativa e estética os separando, “Alien: Romulus” também gira em torno do objetivo simples de uma mulher. A jovem Rain, interpretada com efervescência por Cailee Spaeny, só quer ver o pôr do sol (ou seria o nascer?) em um planeta distante, chamado Yvaga III. Uma burocracia escravocrata, no entanto, se mostra como empecilho e a condena a permanecer no planeta de mineração onde reside. Esse caráter de libertação, que Rain tanto ambiciona, permeia o filme e se torna um guia a mais entre as várias metáforas que o filme contempla; entre as quais, destaco uma.
O novo capítulo da saga “Alien”, agora dirigido por Fede Alvarez, se abre e se fecha com um horizonte escuro em meio à vastidão estelar. Aos poucos a silhueta de uma nave emerge das sombras – ou, no caso do fim, desaparece nelas -, e podemos ver, então, que havia algo por perto. É uma leitura que inicialmente esboça o vazio, refletindo a insignificância e a pequenez humana perante o universo, mas que ganha contornos de horror quando percebe-se que havia algo ali o tempo todo e que não foi visto de imediato, seja por não ter sido revelado às claras antes ou, no final, por se perder da vista enquanto se distancia. Toda a ameaça do filme poderia ser resumida parabolicamente a essas duas passagens, mas Alvarez vai além do convencional e dedica as quase duas horas que as separam à construção de uma crônica de horrores e sonhos quebrados.
Um traço muito próprio do primeiro filme, de 1979 e dirigido por Ridley Scott, é o fato de não haver uma figura protagonista estabelecida desde o início. Hoje em dia essa iniciativa é bastante atípica, mas funcionou perfeitamente na ocasião para estabelecer a ameaça que se vê em tela até hoje. Aquele é um filme de sobrevivência onde toda e qualquer pessoa pode ser uma vítima do xenomorfo a qualquer momento, e às portas do término, quando Ripley toma o protagonismo para si, entende-se que o preço pago por ela foi alto demais. “Romulus”, por sua vez, vai no sentido contrário. Aqui a protagonista é definida desde o começo, já pagando um preço enorme para sobreviver em um planeta corporativo e naturalmente hostil, e que já quer se ver livre de uma sentença de morte silenciosa. Essa escolha nitidamente avessa ao clássico se faz também no letreiro que nomeia o filme; no filme de 79 os traços das letras que formam “Alien” são acrescidos à tela aos poucos até formar a palavra-título; aqui ocorre o contrário, apresentando o nome completo e esvaindo os traços até não sobrar nada – ou melhor, até sobrarem, numa formação piramidal, um pequeno aglomerado de traços representando o número de integrantes da equipe da vez.
É como se, contraditoriamente mas de forma amplamente intuitiva, o diretor indicasse se distanciar dos primeiros longas com oposição para, a partir disso, prestar tributos ao legado da franquia, ressuscitando-a como consequência. Ele promete entregar algo diferente, e por fim o entrega, mas antes honra o legado tanto de Scott quanto de James Cameron, diretor de “Aliens: O Resgate” (1986), ao restaurar a aura ameaçadora do primeiro e a dinâmica de ação frente às múltiplas ameaças como no segundo. Depois do retorno de Ridley Scott à franquia com o questionável “Alien: Covenant” (2017), que foi o primeiro filme comentado por mim aqui no Papo, muitos fãs deram a saga como morta justamente por ter perdido o viés do horror puramente ofensivo, que provoca temor no público e o leva a se importar com quem vive ou morre. Em “Romulus” temos essa tão bem-vinda retomada, onde existem apenas cinco vítimas humanas potenciais para a criatura xenomorfa, ao contrário dos quase vinte de “Covenant”. A dinâmica “menos é mais” aflora um melhor desenvolvimento de personagens e nos leva a crer que Rain é, de fato, potencialmente equiparável à Ripley de Sigourney Weaver.
Alvarez, contudo, não nega “Covenant” e nem tampouco “Prometheus” (2012) à sua relevância. “Romulus” conecta os últimos filmes à jornada de Ripley com um didatismo magistral, que consegue cativar mesmo em meio ao oceano de exposições que os diálogos trazem. Mas o destaque vai, novamente, para a dinâmica entre humanos e máquinas. A relação entre Rain com o Android Andy, interpretado aqui com um talento apuradíssimo por David Jonsson, é o fio condutor do todo que “Romulus” é. Jonsson rouba a cena para si toda vez que aparece, e cabe a ele lidar com as escolhas difíceis e os dilemas morais mais interessantes que o filme aborda. Entre surpresas, acréscimos canônicos e revisões que expandem o universo, pode-se dizer que “Alien: Romulus” é um dos filmes mais corajosos do ano, que abraça o risco e enlarguece os horizontes da saga. Rain, que tanto queria ver o sol em um céu límpido, fica como uma evidência do poder que a franquia tem sob a tutela de novos idealizadores. O sol que Rain tanto desejava ver pode não ter vindo, mas, por hora, fica o sol que Fede Alvarez se provou ser, jogando luz e aquecendo em muito o coração dos fãs que almejavam há muito assistir uma obra do quilate dos clássicos. Afirmo, sem medo algum, que é um dos melhores filmes do ano.
Os filmes “Alien” estão disponíveis no catálogo da Disney+.
“Uma Dama de Óculos Escuros Com Uma Arma no Carro” foi adicionado recentemente ao Prime Vídeo, após anos de procura para reassisti-lo. Fica a dica!