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“Ainda Temos o Amanhã”: Aclamada comédia dramática é jornada de transformação e um grito de libertação feminina na Itália do pós-guerra | 2024

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do fascismo, os respiros da liberdade vieram repletos de esperança na Itália, ainda que as consequências do conflito estivessem sendo bastante sentidas por seu povo, que sofria com o cenário de escassez e penúria, as cidades em ruínas e com um certo clima de saudosismo de parte de alguns pelo Duce. Esse retrato social complexo e confuso influenciou diretamente o desenvolvimento do neorrealismo italiano, que brindou o mundo do cinema com diretores marcantes como Vittorio de Sica e Roberto Rossellini.

“Ainda Temos o Amanhã”, filme de estreia da atriz Paolla Cortellesi à frente da direção de longa metragens, usa elementos do neorrealismo e da comédia all´italiana para contar uma história original e tocante sobre a condição feminina na Roma daqueles duros tempos do pós-guerra. A trama gira em torno de Délia (Paolla Cortellesi), esposa de Ivano (Valerio Mastanderea) e mãe de três filhos que aceita a sua condição de dona de casa e esposa dedicada a que está destinada. No entanto, a chegada de uma carta misteriosa desperta nela a coragem para desafiar o destino e imaginar um futuro melhor não apenas para si.

Repleto de cenas bem construídas, o filme inicia com o casal protagonista deitado na cama numa bela manhã de sol em Roma. Ao despertar, Délia vira-se em direção a Ivano para lhe desejar um protocolar bom dia. Como resposta, recebe um humilhante tapa na cara. Apesar da cena chocante, imediatamente uma canção de fundo começa a tocar à medida em que câmera vai se afastando do rosto de Délia. A letra fala sobre amor verdadeiro e a felicidade de comungar a vida em comum. A ironia bem sacada contida neste plano inicial é suficiente para prender a atenção do telespectador e uma bela credencial de Paolla Cortellesi na condução de uma trama carregada de peso emocional, porém narrada de forma leve e bem-humorada.

Délia, incialmente, está conformada em viver presa dentro de um casamento marcado por abuso e pela violência, e a manter uma rotina como esposa submissa cuidando dos filhos. A resignação diante dessa dura realidade se conecta muito bem com os tempos difíceis dos primeiros anos do pós-guerra na Itália, que são retratados por um bonito plano aberto que se segue à cena inicial, com a câmera acompanhando o andar apressado e ansioso de Délia pelas ruas de Roma, em busca de pequenos trabalhos que lhe garantam algum dinheiro para ajudar nas despesas de casa. Essa sequência ilustra a escassez e o conformismo pessimista presente na população, que atingia sobretudo as mulheres.

A escolha de um contexto histórico de privação econômica e social é um excelente gancho do qual Cortellesi lançou mão para jogar luzes críticas sobre costumes então profundamente enraizados na sociedade italiana. Ivano é um personagem que reproduz um desprezível comportamento passado de geração em geração, que enxergava as mulheres como simples vassalas, cujo papel social se reduzia aos cuidados da família. Representando o autêntico patife, ele é um homem autoritário e opressor, que atribui parte do fracasso de sua vida à esposa, que julga ser imprestável. E como todo covarde, justifica sua postura atribuindo o seu modo de ser a grandes experiências traumáticas pelas quais passou – “ele fez duas guerras”.

A indiferença e o descaso em relação à esposa e a absoluta irresponsabilidade familiar são refletidos no comportamento dos filhos mais novos do casal, duas crianças que não respeitam a autoridade materna e se negam a internalizar qualquer tipo de etiqueta social que lhes seja inconveniente. Ivano, isentando-se dessa responsabilidade, também atribui à Délia a má educação dos filhos e o seu consequente fracasso como mãe. O calvário silencioso vivido pela protagonista é ancorado na esperança de ver a filha mais velha, Marcella, casar-se com um homem descente. Essa expectativa é alimentada pelo namorico que Marcella mantém com Giullio Moretti, rapaz que pertence a uma família abastada que fez fortuna durante a guerra.

Délia projeta no casamento da filha o sonho de felicidade que jamais teve; a possibilidade de uma vida por ela concebida que nunca aconteceu. Seu matrimônio é um círculo interminável de sofrimento e humilhação, mas ela segue acreditando na força da tradição e na preservação de sua família. No entanto, a sua jornada de transformação é iniciada a partir da carta misteriosa que ela recebe das mãos de sua vizinha e cujo conteúdo o roteiro não revela, mas nos leva a imaginar que das linhas lá escritas emergem a possiblidade de se mudar o próprio destino. A partir de então Délia começa, ainda que timidamente, a tomar as rédeas de sua vida e a trilhar o caminho de sua felicidade. Isto faz, inclusive, ela enxergar que sua filha poderá cometer o mesmo erro que o seu, pois percebe que as boas intenções de Giullio não passam de um jogo de aparências de um conquistador barato, que esconde a mesma natureza controladora e violenta de seu marido.

Para conferir maior dramaticidade à trama, Cortellesi optou pela fotografia em preto e branco, emprestando um caráter poético e neorrealista pop, quase teatral, ao filme, reforçado por elementos cênicos muito bem executados nas cenas de agressão de Ivano à Délia. Em todas essas ocasiões, a diretora transforma a cena numa espécie de musical, com os atores dançando e encenando os gestos violentos, sempre acompanhados de canções de amor carregadas de drama. Com essa tirada satírica, que traz uma certa leveza a essas sequências tão pesadas, a diretora rende uma bela homenagem à comédia all´italiana. As atuações também estão sublimes. Paola Cortellesi confere uma dignidade ímpar à sua Délia, construindo uma personagem com uma força e uma carga emocional incrível. Já Valerio Mastandrea atinge aquele nível de interpretação em que o ator desaparece no personagem; seu detestável Ivano foi muito bem composto e executado.

“Ainda Temos o Amanhã” é uma exortação à liberdade feminina, um grito a plenos pulmões que ecoa aos quatro cantos, carregado pelo simbolismo da queda de um regime político despótico e castrador. Um filme verdadeiramente esplêndido.

Vitor Pádua

Advogado que expia o juridiquês com a paixão pela fotografia e pelo cinema.

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