“Ainda Estou Aqui”: Fernanda Torres brilha em Longa de Walter Salles sobre memória e resistência na ditadura | 2024
Em 1970, o ex-parlamentar Rubens Paiva vivia uma vida plena ao lado de sua esposa, Eunice Paiva, e seus 5 filhos: Marcelo, Vera, Eliana, Ana Lucia e Maria Beatriz. Na arejada casa no Leblon, eles frequentavam a praia juntos, tomavam sorvete regularmente na sorveteria local e apreciavam receber amigos em casa ao som de boa música. A primeira parte do novo longa-metragem do premiado diretor Walter Salles, “Ainda Estou aqui” (2024), faz um trabalho brilhante ao estabelecer a dinâmica saudável da família Fracciolla Paiva. É o refresco que o roteiro proporciona ao público antes da avalanche de emoções que se desenrolará nessa história.
Selton Mello interpreta com graça e carisma Rubens Paiva, um engenheiro, pai amoroso e marido, que, aos 41 anos, foi capturado em 20 de janeiro de 1971 por um grupo de seis homens que alegavam pertencer à Aeronáutica. Esse grupo de oficiais do governo invadiu sua casa armados e o levou para o quartel do comando da Zona Aérea, aonde nunca mais Rubens Paiva foi visto por sua família. A participação de Mello no filme é marcante e fundamental para estabelecer o vínculo afetivo que o público precisa ter para acompanhar o calvário de Eunice Paiva (Fernanda Torres).
A partir do momento em que Rubens Paiva desaparece, a narrativa se concentra exclusivamente no ponto de vista de Eunice, e a câmera de Walter Salles faz questão de explorar o rosto expressivo de Fernanda Torres em diversas passagens do filme. É notável o jogo de luz e sombra que a envolve, quando é engolida pela escuridão ao ser convocada para prestar depoimento no quartel e ao ficar em uma cela fétida e solitária por 11 dias.
Quando Eunice é finalmente libertada do cárcere ao qual foi ilegalmente submetida, a atuação de Fernanda Torres cresce e a personagem passa a assumir toda a situação do desaparecimento do pai das crianças, ao mesmo tempo em que toma as rédeas de sua própria vida. De repente, aquela figura terna e serena do início do filme adquire contornos que ressaltam a dureza e a fortaleza que essa mulher teve que desenvolver ao ser catapultada como a base da família na ausência do marido. Durante uma sessão com o elenco no Festival de Cinema de Nova Iorque, Fernanda Torres ressaltou que interpretar uma figura tão elegante, cheia de dignidade e livre de clichês ou melodramas foi uma experiência intimidante. “Eunice era direta, inteligente e, acima de tudo, feminista! Ela foi incrível!” disse a atriz.
Ao longo de duas décadas, Eunice se tornou símbolo de resistência, ao lado de outros ícones como Zuzu Angel e Clarice Herzog, mulheres que tiveram maridos e filhos mortos pelas mãos do Estado nos porões da DOI-CODI. Eunice se formou em Direito e se especializou em causas de direitos indígenas, tornando-se uma das poucas especialistas nesse tema no Brasil.
O filme é uma ode a Eunice Paiva, e o roteiro faz questão de destacar a dinâmica familiar antes da morte de Rubens Paiva, bem como o impacto desse triste evento na vida dos filhos. A filha que recebe mais atenção e tempo de tela é Veroca, interpretada com vigor pela atriz Valentina Herszage. Veroca tinha personalidade forte, e para poupá-la dos riscos de envolvimento com ideologias políticas em meio à ditadura militar, ela é enviada para Londres para passar um tempo com amigos de Rubens e Eunice.
O filme já demonstra sua ambição no circuito de festivais, tendo feito parte da seleção do Toronto Film Festival e ganhado o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza (2024). Ele teve recentemente sua estreia nos Estados Unidos no Festival de Nova Iorque, onde será distribuído pela Sony Pictures Classic, o mesmo estúdio que impulsionou o fabuloso “Central do Brasil” (1998) algumas décadas atrás. “Ainda Estou Aqui” tem potencial para conquistar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, assim como Melhor Roteiro Adaptado, a obra é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Recentemente, o New York Times elencou Fernanda Torres como uma das potenciais atrizes a serem reconhecidas com uma indicação ao Oscar, ao lado de pesos-pesados como Angelina Jolie, por “Maria Callas” (2024), e da dupla Almodovariana Tilda Swinton e Julianne Moore, por “O Quarto ao Lado” (2024). É uma interpretação monumental e é a primeira vez que um filme nacional recebe destaque nas principais premiações mundiais com potencial de ser reconhecido em mais de uma categoria de prêmio. O The Hollywood Reporter até lista Selton Mello como um possível indicado ao prêmio de Melhor Ator Coadjuvante. Se acontecer, será formidável.
No final de “Ainda Estou Aqui”, Walter Salles nos presenteia com uma cena curta, mas extremamente impactante, com Fernanda Montenegro interpretando Eunice Paiva em seus últimos dias de vida, já com Alzheimer. É de um enorme simbolismo ver uma mulher que foi definida pela luta pela memória e sua preservação, perder justamente aquilo que é mais valioso em seus últimos momentos. O olhar de Fernanda nesse momento específico da trama, capturado pela câmera, transmite todo o sentimento do filme de forma arrepiante.
Na noite de estreia no Festival de Nova Iorque, o elenco e o diretor foram ovacionados pelo público, majoritariamente brasileiro, que prestigiou a exibição. Em seguida, houve um debate no qual o diretor Walter Salles ressaltou que seu filme tratava sobre memória e que, assim como esta é considerada como um músculo da imaginação, a memória também pode ser considerada como um músculo da resistência. E é sobre isso que “Ainda Estou Aqui” trata…