“Acabe Com Eles”: longa disseca com frieza e severidade a crise do masculino | 2025

Para compreender uma sociedade e seu tempo, uma das ferramentas mais reveladoras é observar sua produção cultural e artística. No século XX, o cinema se revelou uma das expressões mais populares e influentes, funcionando como espelho e catalisador de transformações sociais. Nos anos 1920, por exemplo, “O Encouraçado Potemkin” (1925), exaltava a luta de classes e transformava o levante popular em símbolo da revolução socialista. “Metrópolis” (1927), refletia os temores diante da crescente mecanização do trabalho e da brutal desigualdade entre elites industriais e a classe operária, antecipando discussões sobre desumanização e alienação sob o capitalismo. Durante os anos 1960 e 1970, cineastas como Pasolini abordaram com contundência a ascensão da contracultura e a decadência dos valores burgueses. Na mesma época, o movimento da Nova Hollywood emergiu como resposta às crises sociais e políticas, explorando temas como corrupção institucional, traumas da Guerra do Vietnã e o esgotamento do sonho americano.
Hoje, como não poderia deixar de ser, a arte segue como campo de reflexão das crises contemporâneas. Questões como os modelos de família, as experiências da maternidade e da paternidade vêm sendo revisitadas sob novas perspectivas. Um dos temas que mais tem ganhado densidade é a crise da masculinidade. O cinema contemporâneo investiga esse colapso, por vezes de forma irônica, por vezes melancólica, revelando o esvaziamento de antigos arquétipos e a dificuldade em reorganizar afetos e identidades. “Acabe Com Eles” insere-se justamente nesse contexto. Trata-se de mais um capítulo dessa narrativa em que o masculino, longe de qualquer estabilidade ou domínio, surge desorientado, frágil e reativo.
Ambientado na zona rural da Irlanda, a trama acompanha Michael (Christopher Abbott), um homem solitário e atormentado pela culpa que carrega pela morte da mãe. Distante do convívio social, leva uma existência pacata até que um conflito com o fazendeiro vizinho Gary (Paul Ready) e seu filho Jack (Barry Keoghan) desencadeia uma espiral de tensão e violência. Forçado a encarar os fantasmas do passado, Michael se vê diante de escolhas irreversíveis que mudarão para sempre o destino das duas famílias.
A ambientação no interior da Irlanda aproxima o filme, em certa medida, do gênero faroeste, mas não pelo cenário em si, mas pela atmosfera que evoca. Em vez da aridez escaldante do Monument Valley, ícone dos westerns clássicos norte-americanos com suas formações rochosas e vastidões desérticas, aqui predominam os campos vastos e verdes envoltos por névoas. Ainda assim, elementos centrais do faroeste persistem, como a sensação de isolamento e a ideia de uma terra sem lei. No filme, as transgressões parecem ocorrer sem maiores consequências, e não há menções a forças de segurança, tribunais ou qualquer instância de autoridade, como se a própria noção de justiça estivesse suspensa naquele território. A incomunicabilidade também entra em pauta, mas não num sentido ontológico, como nas obras de Michelangelo Antonioni em sua chamada trilogia da incomunicabilidade (“A Aventura”, 1960, “A Noite”, 1961, “O Eclipse”, 1962), onde a falência do diálogo está ligada à própria condição humana. Em “Acabe Com Eles”, a dificuldade de comunicação é contingencial, ou seja, resultado de uma masculinidade forjada na contenção emocional. O que impede os personagens de se expressarem não é a falência da linguagem em si, mas as estruturas sociais e afetivas que os moldaram, interditando o diálogo.
Por fim, é importante tirar um espantalho desse debate. A crise do masculino retratada no cinema contemporâneo nada tem de “woke”, essa palavra mágica usada para transformar qualquer proposta de reflexão em heresia contra os “bons costumes”. O cinema sempre foi questionador e, sob essa ótica “anti-woke”, simplista e paranoica, até o primeiro “Rambo” (1982) se lançado hoje, seria acusado de promover uma “agenda identitária”. Afinal, o protagonista é um veterano de guerra descartado pelo próprio país, vítima de brutalidade policial, cuja violência explode como sintoma de negligência institucional. Sua rendição final não é derrota, mas o reconhecimento de um colapso interno sem lugar na sociedade.
Mas, claro, para os paladinos da cruzada anti-woke, tudo isso não passa de lacração. Homem lidando com sentimentos? Jamais. Papéis de gênero em debate? Doutrinação marxista, é claro. O modelo tradicional de família colocado em xeque? Evidente sinal de que o Ocidente está ruindo. Pobres cowboys, desarmados pelo progressismo e deixados à própria sorte sob um céu fluorescente que paira em meio aos escombros do velho mundo. Homens de bem, preparem-se, pois, ao som de “Like a Prayer”, o fim se aproxima.