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“Suçuarana”: um belo filme de estrada sobre realidades devastadas e o impulso humano de seguir em frente | 2025

“O ferro acabou... ficou um tanto de zumbi andando por aí.”

“Suçuarana” se inicia com o som das explosões das minas formando uma nada agradável trilha sonora para os primeiros passos de Dora diante de nós. Seu olhar cansado perde-se frente a mais um lugar onde não encontra a sensação de pertencimento. Como único companheiro momentâneo, um cão tão sem paradeiro quanto ela; na bagagem, que cabe numa pequena bolsa, a foto desbotada da mãe e as memórias que remontam suas histórias sobre uma terra, o tal vale do título, que lhe surge como última possibilidade de refúgio. É a partir da busca de Dora por esse porto seguro – do qual ela mal sabe da existência – que o longa dirigido por Clarissa Campolina e Sergio Borges vai radiografar as múltiplas erosões provocadas por uma prática econômica indiferente aos seus impactos geográficos e humanos.

Após dez anos perambulando pelas estradas, a personagem vivida por uma excepcional Sinara Teles acostumou-se com ruínas e com o efêmero.  Por isso, suas expressões e seu jeito arredio não permitem uma maior aproximação das pessoas que tentam pela via da solidariedade atravessar o seu caminho: “Eu perco todo mundo que me importa”. Trafegando por acostamentos, dormindo pelos cantos dos estabelecimentos que beiram as rodovias, ou pegando uma carona aqui e outra ali, quando ignora destinos, ela funciona como metonímia dos inúmeros andarilhos que vagam de cidade em cidade à procura de alguma estabilidade e que acabam encontrando apenas precarização: “Emprego não tem, mas serviço tem.”, diz uma das muitas figuras que esbarram com a protagonista.

No entanto, há, paradoxalmente, uma ilusão de liberdade na forma como Dora encara as muitas jornadas nas quais embarca quase como quem responde a uma pulsão. Em certa conversa, é perceptível sua contrariedade ao falar da avó que “nasceu e morreu no mesmo lugar”.  E somente sua chegada numa fábrica abandonada após um acidente que ela experimentará mais uma vez algum senso de coletividade. Aqui o roteiro de “Suçuarana” vai criar uma espécie de ilha de ferro na qual um grupo de trabalhadores mantêm-se ativos no gradual desmonte de suas instalações à procura de qualquer resto de metal que possa ser vendido, rotina essa que confere ao local um caráter ainda mais melancólico, pois, afinal, cada viga retirada apressa o desaparecimento daquela “mina” que passou a sustentar uma comunidade de desgarrados que, pela fé e pela manutenção das tradições, insistem em permanecer viva. Além disso, nota-se pela variedade de gerações que compõe aquele povoado involuntário e pela sutil metáfora do cachorro que “retorna” a representação de um processo cíclico, perpétuo, no qual um novo andar significa jogar-se no escuro sem qualquer garantia, tal como ocorrera após a suposta libertação dos escravizados.

Inspirado no livro “A Febre na Selva” de Henry James, “Suçuarana” (que simbolicamente dá nome ao felino com maior distribuição das Américas) discute a desolação provocada pelo extrativismo inconsequente. Com elementos que remetem ao extraordinário “Arábia” (2017) e ao recém-lançado “O Silêncio das Ostras” – que também conta com Sinara no elenco – esse filme de estrada, dono de um daqueles planos finais que te acompanham por algum tempo, é uma crônica tristonha sobre pessoas marginalizadas, à deriva num país que segue sem rumo, e sobre as utopias que alimentam o nosso instintivo (e humano) desejo de seguir em frente.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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