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“Ernest Cole: Achados e Perdidos”: entre arquivos reencontrados e memórias feridas, Raoul Peck revela a força bruta das imagens do fotógrafo | 2025

Em uma entrevista concedida ao programa Roda Viva em 2013, Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos e humanistas brasileiros, afirmou que o milésimo de segundo registrado pela câmera carrega consigo uma história, composta de passado, presente e futuro. Para ele, cada imagem é um recorte inserido em um contexto mais amplo, condensando memórias e sugerindo desdobramentos que vão além do instante capturado.

Essa compreensão do poder narrativo da fotografia reflete perfeitamente a vida e obra de Ernest Cole, fotógrafo sul-africano cuja trajetória sob o apartheid evidencia a capacidade da imagem de ultrapassar o simples registro documental. Assim como Salgado, Cole transforma instantes em fragmentos saturados de história. Ao documentar as restrições impostas à população negra ou flagrar gestos de humanidade em meio à opressão, suas fotografias convertem cada milésimo de segundo em testemunho, memória e denúncia.

“Ernest Cole: Achados e Perdidos”, novo documentário do haitiano Raoul Peck, mergulha nesse acervo reencontrado após anos considerado perdido. Peck evita a narração didática e sem ajuda de demarcação temporal precisa e repetitiva, aposta na força bruta dos retratos e relatos de Cole, permitindo ao espectador caminhar junto à história de um país atravessado pela segregação, violência e, sobretudo, pela dignidade de quem insiste em sobreviver.

No longa, é evidente o respeito pelo olhar de Cole, pelo gesto corajoso de registrar o inaceitável sem recorrer ao espetáculo. Peck constrói um tributo, um convite à reflexão. Cada fotografia nos instiga a questionar mecanismos de opressão que atravessam nosso próprio tempo, percepção que se intensifica quando o documentário aborda o exílio do fotógrafo nos Estados Unidos. Impedido de retornar à África do Sul, Cole vive o dilema da saudade e do desenraizamento, potencializado na narração de Lakeith Stanfield, que expressa em voz alta, repetidas vezes, a dor na impossibilidade de voltar para casa.

Nos EUA, especialmente em Nova York, Cole se depara com manifestações de liberdade ausentes sob o apartheid, como casais inter-raciais ou do mesmo sexo. Mas ao viajar pelo sul do país, encontra formas de segregação e violência racial que, por vezes, rivalizam ou até superam os horrores vividos na África do Sul. Com isso, o filme mostra que as fronteiras da opressão são móveis e que o racismo estrutural se reinventa em diferentes contextos.

Se o cinema de Peck já se destacou por revisitar arquivos e iluminar narrativas apagadas, como em “Eu Não Sou Seu Negro” (indicado ao Oscar em 2017), aqui o diretor mantém uma abordagem tradicional. A montagem é sóbria, a narração de Stanfield e os depoimentos se alternam com imagens de arquivo, compondo uma estrutura clássica do formato documental. As fotografias de Cole ilustram e pontuam os relatos, mas não há experimentação como a de Agnès Varda em “Saudações, Cubanos” (1963), documentário composto exclusivamente por fotografias estáticas.

No fim das contas, “Ernest Cole: Achados e Perdidos” não precisa se arriscar para deixar sua marca. Peck faz o essencial: retira o pó dos arquivos, dá espaço às imagens e permite que a brutalidade do passado fale por si. O impacto não está no formato, mas no que se vê, e isso basta.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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