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Festival de Cinema Europeu Imovision: “Brincando com Fogo”, de Delphine Coulin e Muriel Coulin

Em 1945, ano que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial, o filósofo austríaco-britânico Karl Popper publicou “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, obra em que formulou o paradoxo da tolerância — tema que, quase oitenta anos depois, não perdeu a urgência, especialmente em tempos de ressurgimento do fascismo. Popper alertava: se uma sociedade for ilimitadamente tolerante, acabará destruída pelos intolerantes. Como afirmou: “Devemos, portanto, reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes”. Refletindo as tensões contemporâneas, “Brincando com Fogo” confronta a questão da intolerância, mas falha em sustentar a clareza e a firmeza que o alerta de Popper exige.

A trama acompanha Pierre (Vincent Lindon), um pai viúvo que enfrenta o desafio de criar dois filhos na transição entre a adolescência e a idade adulta. Louis (Stefan Crepon), o mais novo, é um excelente aluno e avança com sucesso nos estudos. Já Fus (Benjamin Voisin), o mais velho, aproxima-se de grupos de extrema-direita, rompendo frontalmente com os valores defendidos pelo pai. Pierre resiste e tenta, inclusive pela força, afastar o filho desse caminho, mas assiste, impotente, ao impacto crescente dessas influências sobre a vida do jovem.

Vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Veneza de 2024, Vincent Lindon comprova, mais uma vez, seu lugar incontestável no cinema europeu. Aos 65 anos, cada prêmio parece apenas um pequeno reconhecimento diante da solidez de sua trajetória. Dividindo a cena, os jovens Stefan e Benjamin compõem, junto de Lindon, um núcleo familiar que é também um microcosmo das disputas ideológicas que rasgam o mundo contemporâneo. O filme opta por ocultar os conflitos mais graves que ocorrem fora de casa, enquanto ilumina, com minúcia, cada embate travado entre as paredes do lar. Fus encarna a radicalização à direita; Pierre, a defesa de valores democráticos; Louis, busca conciliação, o caminho do meio. Importa dizer que Fus não é caricatura. Entre a revolta e o ressentimento, nele sobrevivem traços de ternura, o filho brincalhão, o irmão cúmplice, o amigo leal. Ao construir esses contrastes e rejeitar estereótipos fáceis, o filme alcança momentos de precisão.

Mas, apesar do foco concentrado nos três personagens e da escolha de um recorte temporal contido, “Brincando com Fogo” desequilibra o próprio debate que propõe. Em dado momento, as ações de Fus ultrapassam um limite, e o filme, hesitante, sugere a partilha da culpa. Sem entrar em detalhes para evitar spoilers, essa diluição recai tanto sobre personagens internos quanto sobre forças externas à família. É nesse ponto que a narrativa se afasta do princípio que parecia querer defender. Num tempo em que as ambiguidades custam caro, essa escolha narrativa soa, além de confusa, perigosamente ingênua.

Não há diálogo possível com o fascismo. Ao hesitar diante da intolerância, “Brincando com Fogo” enfraquece aquilo que deveria proteger. Relativizar o inaceitável nunca foi um gesto de coragem. É, antes de tudo, um ato de irresponsabilidade.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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