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Festival de Cinema Europeu Imovision: “O Último Moicano”, de Frédéric Farrucci

O que resta quando o lugar que moldou sua existência já não reconhece tua presença? Essa é, talvez, a pergunta que move “O Último Moicano”, segundo longa-metragem de Frédéric Farrucci, que troca a noite urbana e áspera de “Night Ride” (2019) pela paisagem insular da Córsega, cenário que aqui não é apenas pano de fundo, mas campo de batalha.

Joseph, interpretado com brutal delicadeza por Alexis Manenti, é o último criador de cabras da costa de Santa Manza, território tensionado por interesses cruzados entre o capital imobiliário, o turismo de alto padrão e as dinâmicas mafiosas que operam entre eles. É nesse lugar, entre a solidão de uma rotina anacrônica e a violência de um presente acelerado, que ele se torna, sem querer, símbolo. É curioso que o gesto que inaugura essa transformação seja o da recusa, afinal, Joseph não quer lutar, não quer representar, não quer explicar. Apenas quer permanecer. Mas, como nos westerns clássicos (e Farrucci claramente dialoga com esse imaginário), o desejo de ficar em paz é muitas vezes o estopim do conflito.

A estrutura narrativa é simples e direta. Após recusar vender suas terras e matar acidentalmente um dos agressores, Joseph foge. O que se segue é um filme de perseguição, mas também de dissolução. Seu corpo vai se apagando no campo e no tempo. É a sobrinha, Vannina (Mara Taquin), quem reinscreve essa ausência em forma de narrativa. A campanha digital que ela inicia, feita de postagens, vídeos, grafites, começa de modo quase instintivo, mas logo assume contornos de resistência. Farrucci trata a internet como um espaço fértil para a mitificação, um território simbólico ainda livre, em contraste com a terra já colonizada pelo capital. Mas essa abordagem evita o conflito, e em um tempo em que as redes também operam como instrumentos de controle, distração e apagamento, o filme prefere enfatizar sua potência evocativa e ignora as ambiguidades que elas carregam.

O mito de Joseph não nasce do discurso, mas da poeira que se levanta ao redor. Do grafite na pedra à música no bar, passando pela acolhida silenciosa dos outros pastores. Tudo o que é simbólico surge sem alarde. Farrucci filma esses gestos com contenção, como quem escuta um rumor que ainda não se deixou nomear. Não há aqui o delírio romantizado da resistência, tampouco o fetiche da brutalidade.

“O Último Moicano” pode parecer, à primeira vista, um filme previsível. E talvez seja. Mas sua força não está na surpresa, e sim na insistência. Insistência em habitar um espaço quando tudo ao redor força a partida. Insistência em narrar um corpo comum quando tudo exige uma performance. Insistência em desaparecer do mapa e, ainda assim, se tornar impossível de ignorar. É, afinal, sobre isso que se trata, resistir, mesmo que em silêncio. E desaparecer, se preciso for, em voz alta.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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