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“Dahomey”: vencedor do Urso de Ouro, documentário reflete sobre tesouros perdidos e amplifica vozes silenciadas | 2024

Nos últimos vinte anos, o cinema tem procurado, ainda sem muito sucesso, corrigir um erro histórico relacionado à representação do continente africano. Durante grande parte do século passado, as produções cinematográficas retrataram a África por meio de estereótipos raciais e culturais, oferecendo uma visão reducionista e distorcida de sua diversidade e riqueza sociocultural. Embora algumas obras tenham abordado a opressão enfrentada pelos povos africanos, muitas dessas narrativas ainda são moldadas por uma perspectiva ocidental, frequentemente impregnada de um sentimento de culpa superficial. Esse enfoque tende a operar como um apelo emocional voltado à classe média europeia ou estadunidense, promovendo uma compaixão efêmera e estéril que pouco contribui para um entendimento mais profundo e genuíno das realidades africanas.

Alguns festivais têm buscado, ainda que de forma tímida, preencher esse vácuo. “Dahomey”, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2024, exemplifica esse esforço ao dar voz a questões fundamentais sobre identidade, memória e reparação. Dirigido pela franco-senegalesa Mati Diop, o documentário explora a repatriação de 26 tesouros reais do antigo Reino de Daomé, hoje Benim, saqueados por tropas coloniais francesas no século XIX. A obra captura as reações e reflexões do povo beninense sobre a devolução desse patrimônio cultural, destacando as implicações simbólicas desse retorno.

O filme adota duas abordagens distintas, ambas distantes do convencional. A primeira, de caráter prático e possivelmente a mais relevante, é a ausência deliberada de vozes francesas — sejam elas de autoridades, representantes ou cidadãos comuns. Esta é, acima de tudo, uma narrativa exclusiva do povo beninense. A segunda abordagem, mais simbólica, combina elementos factuais e ficcionais. Por meio de uma das estátuas repatriadas, que personifica o rei Ghézo, o filme dá vida a memórias e expectativas sobre o retorno ao lar, tecendo um diálogo poético entre o passado e o presente.

Com cerca de 40 minutos de exibição — praticamente a totalidade do longa, que possui pouco mais de uma hora de duração —, o filme apresenta poucos diálogos. Próximo ao desfecho, no entanto, somos conduzidos a um intenso e reflexivo debate na Universidade de Abomey-Calavi, a principal instituição pública de ensino superior do Benim. O debate, marcado por um alto nível de argumentação, dá voz a diferentes perspectivas sobre a repatriação dos tesouros reais. Enquanto alguns participantes destacam aspectos positivos do retorno das peças, outros expressam críticas e preocupações. Uma das questões mais debatidas é o número limitado de itens devolvidos — apenas 26, em um acervo de mais de 7 mil artefatos saqueados.

O último longa africano a representar um país do continente no Oscar foi “Timbuktu” (2014), dirigido por Abderrahmane Sissako, um drama franco-mauritano que retrata os impactos da ocupação jihadista na cidade histórica de Timbuktu, no Mali. Desde o prêmio em Berlim, “Dahomey” vem se destacando e já figura na pré-lista do Oscar nas categorias de Filme Internacional e Documentário, aumentando suas chances de integrar a seleção final. Mesmo o Oscar não sendo um indicador absoluto de qualidade cinematográfica, sua relevância na ampliação da visibilidade global é inegável. Produções como “Dahomey” não apenas reivindicam espaço no cenário internacional, mas também funcionam como marcos simbólicos, abrindo caminhos para que diferentes culturas compartilhem suas narrativas. Mais do que troféus, esses reconhecimentos possuem o poder de fomentar diálogos mais plurais e inclusivos em escala global. É um desejo que carrega certa dose de ceticismo, é verdade, mas sonhar nunca foi um fardo pesado demais para se carregar.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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