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“Mami Wata”: Longa nigeriano celebra a ancestralidade frente a imposições supostamente civilizatórias | 2024

O cinema africano, de modo geral, ainda é um território pouco explorado. Cineastas como os senegaleses Ousmane Sembène e Safi Faye ou o mauritano Abderrahmane Sissako – só para citar alguns – raramente figuram em listas que apontam nomes relevantes tanto do passado quanto do presente. Tal miopia, que na verdade esconde uma doença muito pior, acaba por impedir o contato com obras diversas e profundas, que têm muito a dizer, sobretudo quando pensamos numa herança colonial que nos irmana e também na igual necessidade de afirmação de uma identidade através da valorização de aspectos culturais. O nigeriano “Mami Wata”, presente no catálogo da FILMICCA, é um ótimo exemplo de obra que discute as fricções advindas da nem sempre harmoniosa relação entre aqueles que querem preservar tradições e os que anseiam por modernização.

Dirigido por C.J. ‘Fiery’ Obasi, este folclore do oeste africano nos coloca no povoado de Iyi, cujos habitantes vivem sob os cuidados de Mama Efe (Rita Edochie), mulher que seria a intermediária entre os humanos e Mami Wata, divindade protetora das águas que seria algo semelhante à nossa Iemanjá. Contudo, a existência da figura sobrenatural e autoridade da líder espiritual começam a ser contestadas quando a morte de uma criança abala a fé dos membros daquela comunidade. A partir disso, forças antagônicas vão se mobilizar para que, de um lado, a crença naquele matriarcado seja enfim superada por um governo encabeçado por homens; do outro, com a tardia união das filhas de Mama Efe, o intuito será a restituição plena do sistema até então vigente.

A princípio, a trama já estabelece no seio da “casa real” um clima de desestabilização ao colocar Zinwe (Uzoamaka Aniunoh), herdeira do posto de intermediária, como alguém que bate de frente com a representação carnal da entidade, no caso, sua mãe. Além disso, a direção consegue expor de modo bastante expressivo a ambivalência entre a vida daquela família que vive confortavelmente mediante oferendas – observe como Prisca (Evelyne Ily) é a única a ter uma motocicleta – e a pobreza dos demais moradores da região. Nesse contexto, a chegada de Jasper (Emeka Amakaeze), náufrago que representa as inúmeras guerras civis que historicamente assolaram a África, vai ampliar a dimensão do conflito, já que não demora até que ele se coloque como chefe dos dissidentes e substitua lanças por metralhadoras.

Esteticamente, o projeto enche os olhos graças ao belo trabalho – vencedor em Sundance –da diretora de fotografia brasileira Lílis Soares. Através de um preto-e-branco diferente, mais estourado, ela ressalta o contraste entre e as pinturas corporais típicas e os tons de pele dos atores, reforçando pelo trato com a imagem a beleza de uma identidade que se pretende visível. A direção de Obasi também se destaca, principalmente, pela maneira que explora composições nas quais o foco ajuda a definir o peso das cenas. Em vários momentos, a imposição de um personagem e fragilidade de outro se dá apenas pela utilização desse recurso.

Por fim, “Mami Wata” resgata o elemento mágico para mostrar que nenhum processo dito civilizatório – e aqui fica a pergunta: o que é civilização? – terá sido exitoso sem o máximo respeito às heranças ancestrais dos povos. Aliás, seria maravilhoso ver o Brasil, país que ainda preserva ranços do período colonial, levando mais vezes seu riquíssimo folclore às telas, explorando, inclusive, o sucesso recente de “Cidade Invisível”. Apesar de um pequeno deslize na resolução envolvendo uma figura importante na construção da dicotomia entre masculino e feminino, como se o segundo denotasse algum tipo de fraqueza, o longa de  C.J. ‘Fiery’ Obasi não deixa de ser uma bela porta de entrada para quem não conhece o audiovisual nigeriano, um dos mais profícuos do mundo e, quem sabe, um primeiro passo para a descoberta de um continente inteiro de bom cinema.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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