“Divertimento”: Longa mostra como a perseverança e o poder da música fazem superar preconceitos e mudar a realidade | 2024
Filmes que retratam jornadas pessoais de superação sensibilizam e emocionam, pois contam histórias eminentemente humanas, que nos despertam uma empatia imediata, sobretudo quando baseadas em eventos verídicos. Em termos comerciais, é quase uma receita de sucesso. “A Busca da Felicidade” (2006), “Intocáveis” (2011) e “Lion – um Jornada Para Casa” (2016), são exemplos recentes de enredos tocantes que rederam boas bilheterias no cinema. Em produções como essas, o limite tênue entre o apelo emocional e a pieguice acaba sendo o grande desafio do cineasta; o equilíbrio perfeito sobre essa corda bamba é determinante para que o filme não descambe para o sentimentalismo barato. A diretora francesa Marie-Castille Mentiom-Schaar parece ter superado com sucesso esse desafio em seu mais novo longa, “Divertimento”, com estreia prevista para o dia 18 de julho.
O filme acompanha a emocionante saga das irmãs gêmeas Zahia (Oulaya Amamra) e Fetttouma (Lina El Arabi), que alimentam o sonho de tornarem-se regente e violoncelista. Influenciadas pelo pai, ambas são apaixonadas desde a infância por música clássica e desejam torná-la acessível a todos, em especial para aqueles que vivem na periferia. Com ambição e idealismo, as irmãs enfrentam toda sorte de dificuldade, como preconceito, falta de incentivo e o machismo presente no mundo da música clássica. Na França, em 1995, ser uma jovem de 17 anos de origem argelina, com um projeto de montar uma orquestra, era quase uma afronta ao status quo.
Embora tenha contado com um argumento tentador, Marie Schaar –também roteirista do filme – parece ter preferido se afastar das tintas panfletárias que lhe poderiam ter sido convenientes. Seria fácil ressaltar os temas políticos e sociais subjacentes à história das duas irmãs e utilizá-los como um manifesto feminista, amplificado por altas doses de um discurso pró migração. Se tivesse escolhido esse caminho, cairia facilmente nas graças de uma certa claque que enxerga o cinema – e arte de uma maneira geral – pela lente reducionista da militância política, que geralmente empobrece qualquer obra artística. Felizmente a cineasta optou por explorar o drama humano, os obstáculos impostos pela realidade que desafiam a resistência dos perseverantes. Tramas assim encontram mais eco porque são universais; o comentário social está presente, mas não é o protagonista. Assim são as boas histórias.
Por ser um filme que tem a música como pano de fundo, a trilha sonora, assim como as irmãs protagonistas, é personagem central do longa. As peças de música clássica regidas por Zahia e tocadas no violão celo de Fettouma integram a própria narrativa e simbolizam o esmero, o esforço e a dores necessárias para se alcançar o virtuosismo exigido para tocar e reger uma orquestra. Essa relação simbiótica entre a trilha e a atuação de Oulaya Amamra e Lina El Arabi é muito bem composta; as atrizes entregam uma interpretação emotiva, porém equilibrada, dentro da proposta estabelecida pela diretora. É uma harmonia sublime e de uma leveza encantadora.
Vale destacar, também, o papel do veterano Niels Aestrup, ator que interpreta o austero maestro Sergiu Celibidache. Apesar de seu extremo rigor, Celibadache enxerga o talento nato de Zahia e se surpreende ao descobrir que a pupila jamais tinha tido aulas de regência. Por ser um intelectual interessado por filosofia e línguas, ele encanta-se pela ascendência árabe de Zahia e demonstra seu genuíno interesse em aprender o idioma. A cena em que ele conversa com o pai da protagonista em sua casa é de uma beleza que nos faz renovar a fé do ser humano em compreender as diferenças existentes entre os seus semelhantes. Isso não o isenta, no entanto, de seus preconceitos, demonstrado durante as aulas, duvidando muitas das vezes da capacidade de Zahia em conduzir uma orquestra. Em dado momento ele afirma que reger não é uma tarefa para
mulheres.
As posturas preconceituosas e machistas permeiam todo filme e revelam o elitismo excludente que há no mundo da música clássica, o qual ainda se vê preso a um tradicionalismo tacanho e pouco tolerante a novos ares. Marie Chaar não poupa críticas a essa realidade, mas o faz com sofisticação e delicadeza. Ao focar na resiliência e na perseverança das irmãs como instrumento de superação, a diretora mostra ao mundo que jornadas individuais são capazes de promover mudanças e alterar costumes ultrapassados que não conseguiram sobreviver aos testes do tempo.
Apesar dos obstáculos e preconceitos, Zahia e Fettouma superaram todas as barreiras e concretizaram o sonho de formar a própria orquestra, que carrega esse nome lúdico Divertimento. Além de já terem se apresentado em diversos países do mundo, a orquestra das irmãs promove oficinas de instrumentos musicais para crianças e adolescentes pobres da periferia de Paris. Mesmo com os avanços, os desafios ainda são grandes; em todo o mundo estima-se que há entre 4 e 6% de mulheres maestrinas numa orquestra sinfônica. A luta pela igualdade de gênero, também, na música clássica, ainda é grande.
“Divertimento” é um filme leve e inspirador, que mostra como perseverança, foco e determinação são capazes de sobrepor preconceitos e mudar a realidade.