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“Testamento”: Comédia francesa é crítica inteligente e bem-humorada aos exageros do politicamente correto | 2024

Costuma-se dizer que a comédia, seja na literatura, no cinema ou no teatro, é o gênero que nos permite rir e achar graça de nós mesmos; de fazer piada com o ridículo da condição humana. Seu espírito libertário e provocador está sempre pronto para colocar o dedo na ferida sobre temas que geralmente são balizados por certezas auto-evidentes, sobretudo quando essas certezas são fundadas em discursos políticos que se dizem repletos de boas intenções. Em “Testamento”, o olhar mordaz do cineasta canadense Denys Arcand está voltado à sociedade contemporânea para fazer uma crítica bem-humorada e inteligente ao politicamente correto. A reflexão tragicômica sobre o espírito do tempo é um traço característico da cinematografia de Arcand, que já havia sido muito bem trabalhada em “As Invasões Bárbaras” (2003), longa vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, ao tratar de temas como angústia existencial e sensação de deslocamento, novamente presente em sua mais nova película.

Na trama, acompanhamos a vida tranquila de Jean-Michel (Rémy Girard), um arquivista aposentado de 73 anos que vive num lar para idosos dirigido por Suzane (Sophie Lorain). Sua rotina tranquila é interrompida pela chegada de um grupo de jovens ativistas políticos que ficam acampados no jardim da instituição, exigindo a remoção de um mural colonialista pintado na parede de entrada do hall do casarão, despertando em Jean-Michel um misto de sensações que vão da irritação à confusão. Enquanto enfrenta uma crise de identidade em meio à pressão do politicamente correto, ele se vê confrontado não apenas com as mudanças do mundo ao seu redor, mas também a inesperada descoberta de um amor então insuspeito por Suzane.

Do punhado de temas que Denys Arcand pretende explorar, a sátira social é a que mais salta aos olhos, permeando o filme em todos os seus três atos. É uma escolha narrativa consciente que se apresenta ao espectador sem rodeios que fica clara logo na primeira sequência, quando Jean-Michel participa de uma premiação literária promovida pelo Ministério da Cultura de Quebec. Na cena, o protagonista é o único idoso branco no recinto. A sua presença ali é vista com desprezo pelos demais, em especial pelas premiadas, todas mulheres de distintas etnias, cujas obras são um autoelogio às bandeiras político-ideológicas que defendem. É óbvio que há um exagero cômico na construção da cena, mas o desconforto nela retratado dá o tom dos caminhos que o cineasta escolheu percorrer.

A deificação do politicamente correto e o quão pernicioso isso pode ser para o tecido social é o subtexto que imediatamente emerge do roteiro. Proteção de minorias e o fomento ao identitarismo são aspectos de um pensamento que virtuosamente pretende superar injustiças históricas, mas que, ao assumir contornos sectários, cria um ressentimento divisor. Dentro dessa premissa, Arcand trouxe um arco narrativo centrado no conflito de gerações para fazer troça da petulância natural da juventude, que acredita reunir em si todas as virtudes morais e políticas, e que costuma atribuir a responsabilidade pelos males do mundo àqueles que aqui habitam por mais tempo, daí o desprezo pela figura do idoso.

A desconstrução da postura arrogante – alimentada com grandes doses de hipocrisia – dos jovens protestantes acampados em frente ao lar de repouso é inteligentemente apresentada na cena em que Jean-Michel decide confrontá-los, acompanhado de um amigo antropólogo e de uma professora descendente direta dos povos originários do Canadá. Ao serem questionados a que tribo indígena pertenciam, os aguerridos militantes simplesmente não eram capazes de responder, pois todos eles, pessoas brancas e bem afortunadas, apropriaram-se de uma causa da qual não têm o menor conhecimento – mas que se julgam ser legítimos representantes – apenas para estabelecer um enfrentamento ao que acreditam ser o status quo opressor.

O olhar de Arcand também não isentou de crítica o papel exercido pela imprensa como agente fomentador de uma espécie de marcha da insensatez, e o imobilismo cínico do Estado canadense, incapaz de reagir aos exageros de uma agenda política avessa ao diálogo e bastante propensa ao autoritarismo. Quando ficam sabendo do protesto, diversos canais de tv se dirigem para a porta do asilo já com o discurso pronto, decididos a acusar os responsáveis pela administração do local de promover o racismo. Ao tomar pé da situação, uma agente da alta burocracia do Estado transfere à Suzane a responsabilidade para lidar com a situação, jogando-a na cova dos leões.

Apesar do tom político perpassar todo o filme, a obra não assume um caráter panfletário. Esse pano de fundo é o gancho utilizado por Arcand para explorar a melancolia de seu protagonista, um homem septuagenário que jamais se casou e não constituiu família, e que se vê deslocado num mundo em constantes transformações. A nova realidade, com costumes tão complexos, o fazem refletir sobre a própria vida e sobre como as coisas eram mais simples no passado. Essa sensação de desencaixe, no entanto, é aliviada pela inesperada descoberta do amor que ele desenvolve por Suzane.

“Testamento” é um belíssimo convite para que embarquemos na jornada de autodescoberta de seu protagonista, que mesmo no fim da vida consegue enxergar no amor um fator permanente de novas possibilidades, ainda que o mundo ao redor esteja uma completa bagunça.

Vitor Pádua

Advogado que expia o juridiquês com a paixão pela fotografia e pelo cinema.

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