“Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados”: Longa confirma boa fase do cinema alemão, apresentado uma trama repleta de paixão e desejo, tendo a literatura como fio condutor | 2024
As recentes produções do cinema alemão têm sido um alento para os cinéfilos que desejam respirar outros ares que não aqueles vindos de Hollywood. Filmes como “O Capitão” (2017), “O Caso Collini” (2019) e “Nada de Novo no Front” (2022) – este último vencedor de quatro Oscars – são excelentes exemplos de uma cinematografia que segue embalada.
O filme é ambientado em 1990, logo após a queda do Muro de Berlim, no último verão da Alemanha Oriental antes da reunificação. A trama acompanha a jornada de Maria, uma jovem de 19 anos que mora em um vilarejo com o seu namorado, na casa de seus pais. Ela é uma menina radiante, que prefere viver mergulhada nos livros a focar na conclusão de seus estudos, até que esbarra em Henner, um homem rústico que tem o dobro da sua idade e que despertará nela um incontrolável desejo, levando-a a envolver-se em uma tórrida paixão.
Tendo a literatura como fio condutor da narrativa, somos convidados a compartilhar a experiência de Maria, que com sua beleza e juventude, parece se sentir perdida diante de um novo mundo que se apresenta diante de si. Essa sensação de deslocamento e incerteza é uma bonita alegoria para o impacto que a liberdade repentinamente conquistada representou para muitos cidadãos que viviam na Alemanha Oriental.
Maria é apaixonada pelo namorado, Johannes, mas, diferentemente dele, não tem tudo planejado. Ela está vagando, tentando buscar inspiração para sua vida e para seu futuro nos livros que lê. Isso a coloca involuntariamente numa posição fragilizada. Seu medo é de não conseguir encontrar um caminho claro e seguro, o que é reforçado quando sua mãe lhe revela que seu pai a trocou por uma jovem de 22 anos.
Mal sabia ela que o destino de sua mãe também seria selado para si. O encontro furtivo com Henner nos lindos campos verdejantes do vilarejo quando estava prestes a ser atacada por dois cães raivosos, inicia uma irrefreável espiral de desejo. Um único toque protetor daquele homem rústico fez explodir uma intensa e submissa paixão. A juventude, a pele macia e uma certa inocência, despertou em Henner primitivos instintos que o levavam a possui-la sempre com furor.
Esse incontido desejo que a tudo poderá devorar, despertará uma crescente angústia em Maria, que sabe ter traído não apenas o seu apaixonado namorado, como também a confiança da família que a acolheu como se fosse uma filha. Ao mesmo tempo, Henner assume que a grande diferença de idade entre ambos impossibilita qualquer projeto de futuro. Esse conflito emocional é muito bem entregue pelas intepretações de Marlene Burrow (Maria) e Felix Kramer (Henner).
A relação dos protagonistas nos conduz a um inevitável paralelo com Lolita: uma jovem ninfa, um homem maduro e um sensual jogo de sedução. Porém, longe de ser um plágio pueril, temos uma poética homenagem ao clássico da literatura universal.
Além da trama amorosa, o longa desenvolve bem a dinâmica familiar das pessoas que vivem no vilarejo. O toque sensível da direção de Emilly Atef para retratar a relação de afeto entre os familiares de Johannes é muito bem trabalhada. A cena em que um dos tios do menino retorna da Alemanha Ocidental para finalmente poder visitar livremente seus pais e irmãos é construída num tom emocional comedido e com longos silêncios, como se o tempo e a distância tivessem reduzido a intimidade entre aquelas pessoas, que vai sendo retomada em cada abraço e em cada lágrima derramada.
Contudo, senti falta de um desenvolvimento mais aprofundado dos protagonistas, em especial do personagem encarnado por Felix Kramer. Logo percebemos que Henner é um homem solitário, que manteve uma relação conturbada com sua mãe, o que fica claro com o seu comportamento errático, muitas vezes provocado pelo consumo de bebida alcoólica. No entanto, isso é pincelado de maneira muito superficial, apenas em um breve diálogo com Maria.
O grande destaque do filme, porém, é a sua fotografia. Os planos abertos dando destaque para os belos campos do vilarejo e suas fazendas possuem um tom quase documental, registro de uma realidade que em breve deixaria de existir após a conclusão do processo de reunificação da Alemanha. A paixão de Johannes pela fotografia e a sua vontade de documentar o local onde viveu simboliza a marca indelével dessa inevitável mudança, fazendo da metalinguagem um belo recurso de construção de memória.
“Um dia Nossos Segredos Serão Revelados” é um filme impregnado de poesia, paixão e desejo, confirmando o excelente momento do cinema alemão.