“Tudo ou Nada”: Drama é jornada de amor e desespero na luta contra a injustiça | 2024
A fragilidade humana, exacerbada por condições sociais vulneráveis, especialmente para crianças e idosos, é uma realidade universal. Mesmo em países desenvolvidos, onde um extenso aparato jurídico é destinado a garantir a segurança e a integridade de seus cidadãos, as regras concebidas para proteção podem paradoxalmente resultar no oposto. “Tudo ou Nada”, longa françes exibido na mostra ‘Un Certain Regard’ do Festival de Cannes 2023, ilustra de maneira contundente essa denúncia. A história acompanha uma mãe injustiçada pelo sistema, lançada em uma busca incansável e desesperada em meio à burocracia estatal. O filme revela como as estruturas destinadas a proteger os indivíduos muitas vezes falham, deixando os mais vulneráveis à mercê de circunstâncias adversas.
Sofiane (Alexis Tonetti), de apenas 6 anos, sofre um acidente doméstico enquanto sua mãe, Sylvie (Virginie Efira) está trabalhando, e seu irmão mais velho, Jean-Jacques (Félix Lefebvre) encarregado de cuidar dele naquela noite, se atrasa ao retornar para casa. Como resultado desse infeliz acontecimento, Sylvie é denunciada e Sofiane é retirado do convívio familiar. Determinada a reunir sua família novamente, Sylvie busca apoio de uma advogada, seus irmãos e de seu filho mais velho. Juntos, eles enfrentam uma árdua e angustiante batalha judicial para recuperar a guarda de Sofiane.
Na última edição de Cannes, onde “Tudo ou Nada” foi exibido, “Anatomia de uma Queda” se consagrou como o grande vencedor da Palma de Ouro. A obra-prima de Justine Trier opta por uma abordagem que mantém certa distância das noções tradicionais de culpado e inocente, e muito do brilhantismo do filme reside nessa subversão. Por outro lado, “Tudo ou Nada” segue por uma direção diametralmente oposta, escolhendo um olhar mais incisivo, visceral e direto. O discurso do longa tem pouco espaço para nuances, com a narrativa definindo claramente um lado e apostando no sentimento de revolta e profunda angústia do espectador. E isso não é, de forma alguma, um defeito. Embora não alcance a mesma qualidade de “Anatomia de uma Queda”, esta obra dirigida pela cineasta Delphine Deloget é extremamente eficiente no que se propõe.
O filme desde o início tem uma proposta bastante desafiadora, pois logo de cara somos imersos em um verdadeiro caos. Essa desordem inicial é evidente no bar onde Sylvie trabalha e na casa onde vive. Mesmo não sendo nada fora do comum, nenhuma bagunça que já não tenhamos visto aqui e ali, essa sensação de inquietude é constante.
Uma vez estabelecida a problemática e a luta de Sylvie para reaver seu filho começa, outra barreira para nossa aproximação se impõe: Sylvie adota medidas impulsivas e extremamente reativas, seu temperamento passa a ser obstáculo adicional naquela batalha. Chegar à beira da insanidade enquanto a distância de seu filho só aumenta é, no mínimo, compreensível dadas as circunstâncias. A luta que ela enfrenta é como a de Davi contra Golias, e como em qualquer confronto desse tipo, nossa empatia geralmente se inclina para o lado mais fraco. É nessa dinâmica que o filme se ancora até o fim, mantendo-nos investidos na jornada emocional de Sylvie e torcendo por sua vitória contra as adversidades esmagadoras que enfrenta.
Embora algumas características narrativas possam parecer comuns ou previsíveis em certos momentos, é na capacidade de provocar reações intensas, aliado a ótimas performances, com destaque para o núcleo familiar central (mãe e filhos), que “Tudo ou Nada” se solidifica como uma produção significativa, impactante e que tem muito a dizer.