“Tesouro”: Longa alemão resgata com leveza e bom humor as memórias de uma família marcada pelo horror do holocausto | 2024
Superar traumas passados nunca é uma tarefa fácil, sobretudo quando isso envolve o extermínio étnico de sua própria família. Uns fazem disso a luta de uma vida inteira, outros tentam simplesmente seguir em frente. Esse foi – e ainda é – o drama dos judeus sobreviventes dos campos de concentração alemães construídos no território polonês ocupado durante a Segunda Guerra Mundial.
Embora rememorar o tema do holocausto traga um peso inerente, algumas obras cinematográficas conseguem fazê-lo com certa leveza e, por vezes, de forma bem-humorada. “Jojo Rabbit” (2019), de Taka Waititi, é um exemplo bem-sucedido dessa abordagem. O terror do nazismo está presente, mas é retratado pelo ponto de vista inusitado de uma criança alemã que acredita nos ideais do Führer, manifestado pelo seu amigo imaginário – o próprio Hitler – interpretado de forma caricata por Waititi, que é o alívio cômico da trama.
Em alguma medida, “Tesouro”, da diretora Julia von Heinz, que trás Lena Duhan (Girls) no elenco, é permeado por essa leveza e bom humor. Inspirado numa história real que serviu de base para o romance escrito pela autora alemã Lily Brett, o filme tem como protagonista Ruth (Lena Duhan), uma jornalista que viaja à Polônia em companhia de seu pai, Edek (Stephen Fry), que nasceu no país. Ela pretende visitar os lugares onde ele passou parte da infância antes do horror do holocausto. Ele, no entanto, não quer relembrar essas memórias, e, a todo momento, tenta sabotar a viagem criando situações inusitadas.
Além de propor uma reflexão sobre a necessidade de enfrentar traumas do passado, esse é um filme que mostra de maneira muito sensível a reconexão e o fortalecimento da relação entre pai e filha, a partir da reconstituição de memórias familiares dizimadas pelo absurdo do nazismo. Edek sobreviveu às fornalhas e às câmaras de gás espalhadas pelos campos da morte construídos pelos alemães para promover o assassinato em massa de judeus. Retornar à sua terra natal reativa, inevitavelmente, inúmeros gatilhos psicológicos. A aproximação de um trem numa estação de Varsóvia, em 1991, ainda lhe causa calafrios.
Suas artimanhas para escapar do roteiro de viagem elaborado por Ruth são repletas de bom humor, contrastando com o ambiente ao redor de um país que ainda registra as ruínas da Segunda Guerra Mundial e que passou respirar o frescor da liberdade após a queda do Muro de Berlim. Edek escolheu deixar no passado a sua tragédia pessoal para reconstruir a vida em Nova York. Entretanto, sua postura altiva esconde a dor profunda de quem foi vítima de uma das maiores atrocidades da história.
Ruth, por sua vez, além de querer manter a memória viva de sua família, embarca nessa viagem como um processo de autodescoberta. Recém separada, lutando contra o excesso de peso e a baixa autoestima, a convivência intensa com o pai será, ao mesmo tempo, conflituosa e repleta de afeto. Esse turbilhão emocional terá como saldo final a reconexão intensa com suas origens e a certeza de que os momentos difíceis por ela enfrentados poderão encontrar o conforto e o amor de seu pai.
A montagem do filme comete pequenos pecados, como alguns cortes abruptos que incomodam, mas não chegam a quebrar o ritmo. O tom emocional, leve e sensível redimem essas pequenas falhas e fazem desse longa uma agradável experiência. “Tesouro” foi exibido no Festival de Berlim e chega aos cinemas brasileiros no dia 21 de novembro.