“Superman”: James Gunn resgata espírito quadrinesco e tece críticas à sociedade moderna em reinício ao universo DC | 2025
Você tem um cachorro?

“Por que o mundo precisa do Superman” – de todas as cenas de “Superman: O Retorno” (2006, dir. Bryan Singer), a que mais ficou ecoando em minha memória – mais até do que a icônica cena do resgate do avião – foi aquela em que Lois Lane senta, já ao final do filme, diante do notebook para escrever sua contraposição ao próprio artigo premiado, apresentado anteriormente. Os motivos pelos quais o mundo não precisa do Superman pareciam nítidos em sua dissertação emoldurada, mas após o retorno do ícone de esperança – que era também o homem a quem amava – e sua trágica morte após erguer um continente de kriptonita, os motivos de o mundo precisar da presença do herói pareceram calar a escrita de Lois, mas não por não existirem os tais motivos e sim por eles serem tantos que, de forma intimista, se fazem difíceis de organizar em uma ordem vocabular. Essa dificuldade evidencia que o herói é mais importante do que se pode descrever, e que quaisquer palavras, por melhores que sejam, seriam insuficientes para fazer justiça ao herói.
Em 2025, quase cinquenta anos após o mundo de cá da tela se maravilhar com a imagem de um homem voando e salvando o dia, James Gunn, novo diretor executivo da divisão de cinema da DC, escolhe o emblemático personagem para iniciar sua abordagem a um novo universo compartilhado de heróis, repleto de cores e criaturas que se comunicam de forma carnavalesca com os cenários urbanos e místicos que são apresentados aqui. Há a retomada da cueca por cima da calça, da leveza de ser uma referência às crianças, e do símbolo otimista de esperança que o Superman já foi em eras passadas. Com isso, o filme abre espaço para dialogar sobre as futilidades das redes sociais e a ignorância manipulável da cultura de cancelamento (cultura essa ao qual o próprio Gunn já foi vítima), além de fazer um comentário político pertinente e muito interessante sobre as reais motivações de guerras e invasões territoriais, traçando paralelos com a realidade que vivemos hoje, às vésperas de seu lançamento. Um filme pontual e oportuno, mas nunca indelicado ao tratar tais assuntos.
O herói continua com as cores da bandeira estadunidense colorindo seu uniforme, sim, mas dessa vez está mais mundial. Superman sai de uma dimensão estritamente cosmopolita e adentra conflitos geopolíticos que se desdobram ao público com uma simplicidade louvável, mesmo que estereotipada. No entanto, sua carta coringa é um Lex Luthor tão visceralmente sádico e genial que pode-se dizer, com uma boa segurança, que é a melhor abordagem já feita ao vilão no cinema. Nicholas Hoult encarna aqui toda a obsessão e o ressentimento que o empresário sente pela figura mítica do Superman, e Gunn faz uso desses traços para, através deles, humanizar o herói nos melhores e piores sentidos – leia “piores” como inseguranças e imaturidade, não como mesquinharias ou arrogância. A humanização dessa figura mítica se faz, principalmente, através do ímpeto de fazer o bem. O exercício da proteção que o personagem exerce sobre a sociedade e aqueles que dependem dele é, provável, o maior acerto do filme e da interpretação de David Corenswet à persona a quem dá vida.
Existe aqui a adesão a uma estrutura similar à das HQs como as conhecemos. O filme parece um aglomerado de edições com missões diferentes (e inclusive com protagonistas diversos) que formam uma sequência interconectada. Meta-humanos, nesse universo, já são personalidades públicas há três séculos, e o filho de Jor-El chegou à Terra há três décadas. Existe uma interação curiosa entre o personagem título e os demais heróis, contrastando os tipos de abordagem às ameaças e o clubismo que há entre eles. A disposição dos acontecimentos dá um ar colossal aos feitos, que vão desde combater monstros gigantes no meio da cidade até conversas extensas em ambientes privados – tudo com um tom de urgência cartunesco e exagerado, bem ao estilo James Gunn de fazer seus filmes. Tudo parece prático e bem consciente de si mesmo, e isso é muito bom para determinar o clima aventuresco que permeia todo o filme.
Todavia, o filme se esquiva da própria excelência ao tratar, sem nenhuma sutileza, a descrição de sua própria narrativa. O diretor e roteirista se abstém de recontar as origens de Clark/Kal-El como nas apresentações de suas outras interpretações; contudo, nem se dá ao trabalho de maquiar diálogos expositivos ou agregá-los de forma mais orgânica à trama – principalmente nas cenas que procuram situar o público sobre o que aconteceu antes e que, conforme escolhido para essa abordagem, foi decidido não contar. Como resultado, temos cenas tão mastigadas que chegam até mesmo a insultar a inteligência de uma parcela significativa de seu público. Pode-se argumentar o seguinte: há didatismo em histórias em quadrinhos? Respondo que sim, claro que há! Mas há também uma comunicação direta com o público, isto é, através da voz do autor manifesta em balões de narração (aqueles retangulares, sem pontas), e não com personagens repetindo uns para os outros uma série de coisas óbvias que eles, de forma bem redundante, obviamente já sabem.
É como se os amigos de Harry Potter dialogassem com ele após meia década de convivência dizendo “você é um garoto órfão, Harry, porque seus pais morreram em um ataque do maior bruxo das trevas que já existiu, Lord Voldemort, e sua mãe se sacrificou para te salvar e por isso você tem essa cicatriz de raio na testa”. Todo mundo na cena sabe disso, eles convivem entre si há anos, então aquilo que está sendo dito é para o público – e apenas para ele, a fim de contextualizá-lo. Contextualizações assim podem ser feitas, mas quando falta refinamento na escrita isso tira a naturalidade da cena e faz os envolvidos parecerem mongoloides, e esse pecado narrativo está em pelo menos meia dúzia de cenas desse “Superman”. Me vinha, assistindo a esses momentos, aquele áudio vazado da dublagem da série “Flash”, também dá DC, onde Alexandre Drummond (o intérprete vocal do personagem nessa série no Brasil) solta aquele famoso desabafo “olha que diálogo merda”.
O filme acerta em muitos pontos, mas também tropeça em vários outros. O saldo final é positivo, mas soa raso e, de certo modo, vazio também. O Superman que encerra o filme não é diferente do Superman que o inicia. Não houve um arco de amadurecimento e aprendizagem, e nem tampouco algo que o fizesse assumir uma postura diferente daquela que tinha em princípio, como foi com o Batman de Matt Reeves – não que isso seja obrigatório, mas se a escolha é não o ter, então que algo diferente seja proposto para o desenvolvimento do personagem, o que não aconteceu aqui. Coisas aconteceram, ele enfrentou vilões e situações em vários momentos, e no fim das contas salvou o dia; mas não saiu do lugar. Faltou um momento apoteótico, mesmo que simplesmente íntimo, para estabelecer o Superman como o ícone que ele é. Foi interessante ver o Superman como uma figura de mediação em uma guerra, mas o roteiro até isso tira dele e coloca heróis secundários para tomar a frente. Retornando à Lois Lane do filme de 2006, concluo que ainda faltam palavras que façam justiça ao herói. Tomara que Gunn as encontre da próxima vez.