“Sonhar com Leões”: tragicomédia com Denise Fraga discute suicídio e eutanásia com originalidade | 2025

A morte é um tema que alterna sensações, algo que fica ali entre a curiosidade e o medo. Falar de morte ainda é um tabu, quem dirá o suicídio e a eutanásia, que podem provocar discussões calorosas, sejam fomentadas pela religião – já que a Bíblia condena a prática, uma vez que quem o fizer está “condenado a queimar no fogo eterno” -, ou mesmo por motivações pessoais ou filosofia de vida. Recentemente o cineasta Pedro Almodóvar trouxe o assunto à baila no elogiado e premiado em Veneza “O Quarto ao Lado”, onde a personagem de Tilda Swinton procura pela alternativa do suicídio assistido após descobrir que está com câncer. “Sonhar com Leões”, filme de Paolo Marinou-Blanco, Menção Honrosa em Gramado esse ano, opta por caminhos muito originais ao tratar a temática com certo humor, ainda que de um jeito mórbido.
No longa Denise Fraga é Gilda, uma imigrante brasileira em Portugal, que recebe um diagnóstico de câncer que lhe dá apenas mais um ano de vida. Conformada com a doença, Gilda só pensa em uma coisa: morrer com alguma dignidade, e o mais importante: sem dor. Após quatro tentativas de suicídio fracassadas, porém, a mulher vai em busca de uma organização clandestina chamada Joy Transition International que diz ensinar aos seus clientes terminais a se suicidarem sem dor ou problemas em países onde a eutanásia é ilegal. Gilda então embarca nessa jornada de palestras, workshops e aulas ao lado do tímido jovem Amadeu (João Nunes Monteiro), outro paciente sem perspectiva que ela conhece na corporação e que é funcionário de um agência funerária. Juntos, os dois acabam tentando desmascarar o esquema caro e absurdo da empresa enquanto procuram tomar o controle de sua própria situação.
Se cinema é feito de escolhas, a roupagem abraçada por Marinou-Blanco, por mais non-sense que possar parecer, cai com uma luva bem vestida numa atriz da tarimba de Denise Fraga, que se apodera como ninguém do formato crônica, claramente adotado pelo realizador, para atravessar a trajetória de Gilda, uma mulher que está decidida a escolher como quer morrer. São mil e uma maneiras de fazer, mas ela só precisa saber qual delas não lhe causará dor. Nesse caminho, em diversas sequências veremos a quebra da quarta parede em situações carregadas de morbidez, mas impregnadas de muita comicidade, em tonalidades que somente Fraga conseguiria alcançar.
Outro aspecto escancarado no roteiro é como o suicídio pode se tornar um ato egocêntrico, onde quem escolhe essa via, não se importa com tudo e todos que ficarão para trás. Esses diálogos inclusive, são momentos onde a abordagem de Marinou-Blanco alcança com clareza seu propósito, sobretudo nas interações entre Gilda e seu marido, Lúcio (Roberto Bomtempo), que não compreende o modo desgovernado e os caminhos pelos quais a amada esposa decidiu trafegar.
Habitando entre o fantástico e a realidade nua e crua, “Sonhar com Leões” é uma mensagem sem rodeios sobre o assunto, que sim, pode causar desconforto e até se tornar gatilho pra quem sofre com tamanho tormento, mas não deixa de ser um material relevante que pode motivar um debate menos envolto em tabus, cuja estranheza se torna aliada para potencializar o alcance para todos os públicos. Ainda que se torne mais melodramático em seu terço final, é inegável que o traço autoral do projeto seja seu diferencial. Uma espécie de crônica da finitude, o filme, que é uma coprodução Brasil-Portugal-Espanha, tem tudo para se tornar uma dessas pérolas cujo formato dificilmente será reproduzido, sobretudo em se tratando de audiovisual brasileiro.