“Silvio”: Separando o mito do homem comum, cinebio fragmenta a vida de Senor Abravanel a partir do trauma continuado | 2024
Senor. Meu nome é... é Senor Abravanel. O Silvio Santos, o patrão, você deixa lá fora
Graças às falas e visões polêmicas de Ridley Scott sobre um compromisso de veracidade (ou não) por parte do cinema para com os eventos factuais aos quais os ditos filmes “baseados em histórias reais” de apoiam, muito tem se comentado atualmente sobre o papel da sétima arte em torno das retratações de figuras públicas que mexem com o imaginário popular e de como o cinema se constrói, em diversos aspectos, como um formador de opiniões que endossa narrativas errôneas. O que importa, segundo Scott, é que no fim das contas o filme seja, independente de critérios honestos ou fantasiosos, um espetáculo a ser apreciado. O cinema, assim como a literatura, usa artifícios e atalhos convenientes através de licenças poéticas que por vezes deturpam a realidade dos eventos; mas vamos ponderar: isso é mesmo um demérito?
Se usarmos como parâmetro, por exemplo, os livros de “Harry Potter” e suas respectivas adaptações, o argumento é sempre uníssono: “quer entender melhor? leia os livros”. No caso das cinebios, Scott defende que cabe ao público, de igual maneira, pesquisar sobre as figuras retratadas porque, em linhas miúdas (agora eu que estou dizendo), o cinema não deve ter um compromisso fixo com a verdade, caso contrário seria jornalismo. O cinema deve ter um compromisso consigo mesmo, com o entretenimento e com o fantástico que se faz presente por meio dessa contação de histórias. E aí, um ano depois do lançamento da cinebiografia de Napoleão Bonaparte (que foi abastadamente defendida por Scott, o diretor, por ser historicamente infiel à realidade), entra em cartaz no Brasil a cinebiografia de Silvio Santos, que já se tornou polêmica antes mesmo de sua estreia por três motivos: a caracterização de próteses e maquiagem que Rodrigo Faro apresenta em sua incorporação ao protagonista; a declaração do SBT e da família Abravanel após não terem comparecido à pré estreia do filme, citando a não-autorização da cinebiografia; e o falecimento da personalidade retratada poucas semanas antes da estreia do filme, o que tende a tornar indelicado o tema da quase morte do apresentador em 2001.
Uma parcela significativa de semeadores do ódio online se empenhou em condenar o filme antes mesmo de assisti-lo – isso porque, segundo alguns deles, o filme seria de mau gosto pela combinação dos fatores citados acima. Contudo, sinto-me na obrigação de discordar veementemente desse veredito tão precoce e injusto. Eu me diverti, me emocionei e me cativei de tal modo que aquilo me foi apresentado, mesmo já se sabendo o desfecho, se valeu pela abordagem mais íntima ao homem que já fazia parte da vida de um país inteiro. O roteiro faz uma separação curiosa entre a entidade mitológica que Silvio Santos se tornou e o pai de família que Senor Abravanel foi. Existe um aprofundamento nos fracassos e aprendizados do homem enquanto seu império televisivo era erguido, mas também há o enaltecimento de uma estranha jornada do “herói comum” que ele se torna diante das câmeras de Marcelo Antunez. O acréscimo de uma nova camada de humanidade à figura de Sílvio, isto é, Senor, denota seu apreço pela vida e a generosidade que ele teve até mesmo com quem se dispunha a matá-lo.
No entanto, o todo carece de alguns refinamentos. A exposição da evolução da vida de Silvio se faz através de um revisionismo via flashbacks que surgem em diálogos no meio do sequestro, que parecem tão inverossímeis que beiram palestras coach. Todavia, esse absurdismo torna a obra ainda mais curiosa porque, em contrapartida, é perfeitamente plausível imaginar um vendedor nato como Silvio Santos engambelando (com honestidade, deve-se dizer) o sequestrador de sua filha, Fernando, que agora passava a ser o seu sequestrador também. Com essas passagens o filme assume um risco imenso de cair na galhofa, e só se esquiva por pouco graças ao entrosamento entre Rodrigo Faro e o intérprete de Fernando, Johnnas Oliva, que entrega aqui um trabalho memorável. Faro, por outro lado, parece uma incógnita; ele adota tantos trejeitos de Silvio que por vezes parece uma caricatura – o que não tende a ser um problema, desde que o público se dê conta de que Silvio Santos já era uma caricatura ambulante, uma representação de si mesmo. Apesar das duras críticas que tenho visto contra ele, percebo que qualquer outro intérprete teria seguido uma linha de separação entre Senor e Silvio. Faro coloca ambos em uma mesma carranca para destacar que a existência de um se dá através do outro.
Seguindo uma dinâmica bem diferente da série “O Rei da TV”, do Disney+, “Silvio” se empenha em prestar tributos ao maior ícone da televisão brasileira sem necessariamente se aprofundar nos processos que o construíram. Em vez disso, foca na exploração da culpa, do trauma e do sentimento de impotência diante dos infortúnios que se acometeram sobre sua família. As escolhas criativas são boas, mas algumas decisões na edição não (cortes de sobreposição de takes e slowmotions com frames picotados, por exemplo). O resultado final é suficientemente bom, e cumpre seu propósito informativo e didático na composição emocional da dupla que tem o maior tempo de tela. Existe um ditado popular que defende a ideia de que não se deve conhecer seus ídolos. Quando falamos de uma figura tão emblemática quanto Silvio Santos, que adentrava os lares dos brasileiros e dominava como pouquíssimos a plateia e os telespectadores na história da televisão mundial, não parece que estamos conhecendo um ídolo; parece que estamos visitando um amigo. Então antes de julgar como bom ou ruim, aproveite o preço dos cinemas e confira por conta própria essa homenagem ao homem, ao mito, ao pai e ao patrão mais famoso do Brasil.