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“Robô Selvagem”: Deslumbrante e sensível, novo filme da DreamWorks faz do simples um espetáculo | 2024

O processo é uma arte

O uso da inteligência artificial é uma temática recorrente no cinema. Quase cem anos atrás, quando Fritz Lang lançava sua sublime ficção científica “Metropolis” (1927), a arte já apontava as facilitações e os riscos que o uso da tecnologia consciente tende a oferecer em camadas de alcance micro e macro. De lá para cá o assunto ganhou formas e proporções muito maiores, e o debate se estendeu quando James Cameron concebeu “O Exterminador do Futuro” (1984), elevando o temor pelo colapso da sociedade através das ações robóticas e promovendo uma fobia consciente e autocrítica dentro da indústria; fobia essa sempre explorada mas nunca devidamente aprofundada para além do maniqueísmo. Steven Spielberg se dispôs a argumentar a didática emocional possível e passível aos robôs em “A.I.: Inteligência Artificial” (2001), e mais recentemente o excelente “Blade Runner 2049” (2017) retomou o argumento. Contudo, todas as obras citadas dialogam com a relação entre as máquinas e as pessoas, e nunca se dispõem a explorar outras facetas além do antropocentrismo.

Com uma maré crescente de otimismo e delicadeza, eis que “Robô Selvagem” advoga contra o esvaziamento das esperanças futuristas e se permite ser caloroso enquanto a maioria dos demais discursa frieza. Claro, outros filmes já abordaram a tecnologia como uma ferramenta benevolente à humanidade, entre eles “Ela”, dirigido por Spike Jonze em 2013, e “Wall•E”, lançado pela Pixar em 2008, mas “Robô Selvagem”, no entanto, se faz diferente de tudo que se tem visto no cinema contemporâneo. Há quem argumente que “Meu Amigo Robô” (a melhor animação lançada nos cinemas brasileiros em 2024) também mostra a interação entre a tecnologia e os animais, mas sua leitura mais apropriada teria um viés metafórico, tendo em vista que ele adentra uma esfera alegórica que, de novo, representa as relações humanas e suas complexidades. “Robô Selvagem”, por sua vez, faz uso de personagens animais em uma retratação mais verossímil e menos simiesca. Todavia, o que mais chama atenção é a simplicidade da trama e o modo como o roteiro esmiúça humanidade por meio desses animais e os livra de estereótipos mesmo recheando-os de arquétipos.

A premissa é bem simples: um robô de assistência pessoal chega a uma ilha isolada após o carregamento ao qual pertencia cair no mar, e lá ele é ativado acidentalmente por um animal e passa a estudar a fauna local em busca de um propósito para a própria existência. Em sua procura por alguém a quem ajudar, o robô – que na verdade é a robô – se vê responsável por um ovo de ganso e, para exercer algumas das atribuições do dever à sua frente, acaba tendo que burlar a própria programação enquanto descobre a potência de instintos como sobrevivência, preservação e maternidade. Com isso, assim como em “Como Treinar o Seu Dragão” (2010), o foco do filme se dá no desenvolvimento de relações improváveis e em processos de aprendizado difíceis a serem contornados. Para tal realização, foi escolhida uma estética belíssima que mistura a animação estilizada 3D com a clássica 2D, mesclando elementos de aquarela na composição dos cenários paisagísticos riquíssimos (tão belos quanto os de “O Bom Dinossauro”, lançado pela Pixar no Brasil em 2016), remetendo também aos melhores trabalhos do estúdio Ghibli – inspiração essa citada pelo próprio diretor, Chris Sanders, que também co-dirigiu “Lilo & Stitch” (2002) e o já citado “Como Treinar o Seu Dragão”, com Dean DeBlois.

Se em técnica visual o filme é excelente, no quesito sonoro não fica para trás. O design de som imprime uma experiência cinematográfica memorável e a trilha sonora, composta por Kris Bowers, é a mais bonita e sensível de 2024 até o momento. O trio protagonista, cujas vozes originais são de Lupita Nyong’o, Pedro Pascal e Kit Connor, é brilhantemente desenvolvido em suas diferenças e na forma como elas os conectam. Seus personagens, que em português são respectivamente chamados Roz, Astuto e Bico-Vivo, foram dublados por aqui, também respectivamente, por Elina de Souza, Rodrigo Lombardi (mais uma raposa dublada no currículo) e Vicente Alvite & Gabriel Leone nas versões bebê e jovem do Bico-Vivo. O elenco em inglês tem ainda os nomes de Catherine O’Hara, Bill Nighy, Ving Rhames, Stephanie Hsu e Mark Hamill. Com um casamento curioso entre “O Gigante de Ferro” (Brad Bird, 1999) e o clássico conto de O Patinho Feio, “Robô Selvagem” emociona, cativa e dialoga com todas as faixas etárias sobre um dos questionamentos mais latentes da nossa existência; como diria o saudoso Abujamra, o que é a vida? E mais ainda: o que é viver?

Em uma sucessão simples de obstáculos, dilemas, emoções conflitantes e aprendizados forçados em prol da própria sobrevivência, o enredo evoca mensagens que pouco têm sido vistas na sétima arte há tempos – o que é muito curioso, principalmente quando lembramos que são protagonistas não humanos nos ensinando e rememorando aquilo que estamos perdendo em nosso modelo social atual, onde estamos acomodados a um modelo de facilitações e subserviência por parte da tecnologia. O debate sobre inteligências artificiais ganha uma nova camada, mais positiva e panglossiana, renovando a fé em uma evolução tecnológica autônoma que preserva a vida ao invés de exterminá-la. Isso torna o filme denso, mas sem abdicar da leveza. Um espetáculo para chorar e aplaudir de pé.

Vinícius Martins

Cinéfilo, colecionador, leitor, escritor, futuro diretor de cinema, chocólatra, fã de literatura inglesa, viciado em trilhas sonoras e defensor assíduo de que foi Han Solo quem atirou primeiro.

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