“Prisão nos Andes”: Thriller político explora justiça e memória em trama repleta de suspense | 2024
Exibido no Festival de Londres, “Prisão nos Andes” marca a estreia de Felipe Carmona na direção de longas-metragens. Para um primeiro trabalho, o controle sobre a narrativa e o apuro estético revelam uma maturidade surpreendente. De forma ousada, o cineasta se impõe um desafio significativo: todos os personagens são figuras profundamente repulsivas, e, ainda assim, Carmona evita apelar para empatia ou comoção, retratando-os como seres realmente nocivos. Isso levanta uma questão importante: como sustentar o interesse do público diante de personagens desagradáveis sem que esse sentimento não comprometa ou contamine a percepção da obra como um todo? Carmona supera essa barreira ao moldar o filme como um thriller instigante, utilizando o mistério para manter o espectador engajado, mesmo em meio a figuras tão aversivas.
A trama acompanha cinco dos mais brutais torturadores da ditadura de Pinochet, que cumprem longas penas em uma prisão isolada aos pés da Cordilheira dos Andes. Apesar de suas condenações, que somam séculos, os ex-militares desfrutam de privilégios, vivendo sob a vigilância complacente de guardas que mais parecem seus servos. A rotina tranquila é interrompida quando uma equipe de televisão entrevista um dos detentos, cujas declarações desencadeiam consequências inesperadas. O ambiente, antes pacato, rapidamente se transforma em um cenário de tensão crescente, delírios e violência, mergulhando o local em caos absoluto.
Um dos aspectos mais intrigantes em uma trama política é a capacidade de tornar atual um discurso ultrapassado, revelando como ideias aparentemente datadas continuam a ressoar no presente. Em “Prisão nos Andes”, acompanhamos eventos recentes sob a ótica de personagens cujas falas e pensamentos evocam ideologias das décadas de 1960 e 1970, período marcado por golpes militares e regimes autoritários em toda a América do Sul. Essas mesmas narrativas, hoje naturalizadas e recorrentes, revelam como discursos que outrora refletiam contextos autoritários continuam a ecoar atualmente, demonstrando a permanência dessas ideias ao longo do tempo.
O longa foca em cinco militares de alta patente, com o drama se desenvolvendo principalmente ao redor deles. No entanto, à margem da história, os guardas – especialmente um em particular – têm um papel crucial, acrescentando uma dimensão que dialoga diretamente com o contexto social abordado. Assim, três elementos sustentam a narrativa: o foco nos militares, a presença dos guardas como força auxiliar, e um terceiro artifício oculto interessante – o impacto popular. A crise é desencadeada por uma entrevista concedida por um dos detentos, e todos os desdobramentos resultam da repercussão popular. Curiosamente, esse público e a revolta nunca aparecem; essa ausência é um recurso visual engenhoso, que faz uso da sugestão para criar tensão. É como se uma narrativa paralela acontecesse fora de cena, ampliando o impacto dramático e instigando o espectador a imaginar o que está além das câmeras.
Há quem questione o crescente número de produções sobre ditaduras na América do Sul. No Brasil, em particular, o cinema que retrata o período da ditadura é frequentemente criticado como repetitivo, sendo visto por alguns como reflexo de falta de criatividade ou até mesmo como instrumento de doutrinação. Curiosamente, esse olhar crítico raramente se volta à abundância de filmes norte-americanos de guerra ou dramas de tribunal, muitos dos quais são produzidos com clara intenção nacionalista e um discurso populista e patriótico. A verdade é que as ditaduras deixaram uma marca profunda em nosso continente, e as autocracias fazem parte de uma história que precisa, sim, ser contada, lembrada e relembrada. Mesmo com esse esforço, há quem negue ou rejeite esse legado, mas, diante das ameaças sombrias que ainda persistem, o cinema e a arte em geral, embora não tenham a obrigação de tal função, podem ser poderosas ferramentas para manter vivo o passado e evitar que ele seja esquecido ou, pior, repetido.