“Pequenas Cartas Obscenas”: Filme vai além do ‘whodunnit’ e traz comentário social relevante com boas doses de humor | 2024
A previsibilidade é o maior inimigo do suspense. No entanto, embora essa afirmação seja verdadeira, um filme não precisa ser um quebra-cabeça complexo. O fato de o espectador, muitas vezes o “espertinho”, solucionar o mistério antes do ponto de virada não desmerece o filme, nem é mérito de quem assiste. Nesse contexto, aplica-se a máxima: pouco importa sobre o que se trata, mas sim, como a história é contada. Temos uma infinidade de histórias cujo final é amplamente conhecido, mas isso não diminui em nada o seu mérito. Por exemplo, ao assistir “Romeu e Julieta”, alguém realmente se surpreende com o desfecho? A surpresa é realmente importante? Observando a história, fica evidente que essa obsessão por reviravoltas na trama é mais recente do que a tendência atual faz parecer. “Pequenas Cartas Obscenas” possui uma estrutura narrativa bastante convencional e, embora o foco inicial seja o mistério em torno do autor das cartas, o real propósito do filme é o comentário social. Sem apelar para sentimentalismos, o filme utiliza o sarcasmo e a caricatura para satirizar um modelo de sociedade de cem anos atrás, cujos reflexos ainda são perceptíveis nos padrões de comportamento dos dias atuais.
Na trama, acompanhamos Edith (Olivia Colman), uma mulher profundamente conservadora e vizinha da desbocada Rose Gooding (Jessie Buckley). Quando cartas recheadas de palavrões começam a ser enviadas a Edith, Rose é imediatamente acusada de ser a autora. As cartas anônimas provocam uma comoção nacional, desencadeando uma cruel perseguição a Rose e a possibilidade de uma severa punição. No entanto, à medida que as mulheres da cidade – lideradas pela policial Gladys Moss (Anjana Vasan) – começam a investigar o crime por conta própria, elas passam a suspeitar que há algo errado.
O elenco é composto por atores de talento reconhecido, e pouco há o que acrescentar a esse respeito. Contudo, vale destacar o quanto as atrizes visivelmente se divertem em seus respectivos papéis. Isso se deve ao fato de que, por mais densa que seja a discussão, a forma como a narrativa é apresentada proporciona uma experiência extremamente leve, sem esvaziar o discurso. Muito pelo contrário, o teor feminista é manifestado de maneira clara e objetiva. O longa escolhe suas batalhas ao lançar um olhar sobre a condição da mulher, mas isola outros tipos de tensão. Um exemplo é que em todos os núcleos há um personagem negro, inclusive em posições de poder, como o Juiz da corte. No entanto, nenhum comentário sobre tensões raciais é feito, como se a Inglaterra dos anos 1920 fosse um paraíso de diversidade racial, o que está longe de ser verdade.
Lançado sem muito alarde, “Pequenas Cartas Obscenas” é uma obra acessível e extremamente prazerosa, exceto para conservadores mais radicais, afinal, são eles o alvo da crítica. Uma adição valiosa ao cinema contemporâneo, mostrando que é possível abordar questões sérias de maneira inteligente, bem-humorada e envolvente, sem perder a profundidade e a clareza no discurso.