“O Mensageiro”: Lúcia Murat resgata memórias dolorosas e propõe acerto de contas com carrascos do Regime Militar | 2024
Elementos não faltam para constatarmos que o Brasil é um país avesso à memória. Não à toa, ao remontarmos o nosso “passado de absurdos gloriosos”, fica fácil identificar eventos hediondos cujos autores ou cúmplices jamais tenham enfrentado as devidas consequências de seus atos, isso sem falar daqueles que seguem tranquilamente suas vidas em cargos de poder ou que recebem homenagens de suas crias ideológicas. Nesta semana, por exemplo, o noticiário lamentou a morte (aos 96 anos!) do economista que foi um dos signatários do famigerado AI – 5, decreto que instituiu o período mais sombrio da ditadura militar no País, e que atuou em diferentes governos mesmo depois da redemocratização, celebrado como grande conselheiro por autoridades de diferentes espectros políticos.
Assim como essa figura lamentável – que daqui a pouco nomeará alguma rua ou prédio público por aí – muitos carrascos desse período permanecem impunes ou, no caso dos já falecidos, com suas reputações intocadas. Por isso, cineastas como Lúcia Murat, vítima dos horrores praticados pelos homens de farda e uma das vozes de denúncia mais eloquentes da atualidade, são fundamentais para o resgate da memória desse sofrimento na tentativa de imputar a devida responsabilidade sobre seus autores. “O Mensageiro”, seu mais novo longa-metragem, é mais um título a encorpar uma extensa luta por um acerto de contas do Brasil com um passado que muitos fazem questão de varrer para debaixo do tapete.
Baseando-se em suas próprias vivências, Lúcia remonta ao ano de 1969 para contar a história de Vera (Valentina Herszage), uma estudante carioca presa e torturada pelo Exército, e de Armando (Shi Menegat), um jovem soldado que se compadece com a situação desesperadora da moça e que passa a levar informações para sua família. A partir de uma aproximação mais afetuosa entre os dois personagens centrais, a realizadora parece querer expor a linha que separa membros de uma juventude ávida por liberdade democrática de outros facilmente manipulados por discursos que justificam as maiores atrocidades. Nesse sentido, Armando vai representar a ruptura na crença de uma guerra contra “terroristas” à medida que seus laços com Maria (Georgette Fadel), mãe de Vera, vão se estreitando. Distante de casa e confuso em relação ao seu futuro nas Forças Armadas, o personagem vivido por Menegat talvez seja o mais cheio de nuances dentro da trama.
Contudo, é preciso dizer que, mesmo havendo um ou outro momento em que “O Mensageiro” coloque o espectador para experimentar conflitos genuínos frente às relações que se estabelecem no decorrer da narrativa, não deixa de ser um pouco frustrante a apatia com a qual a realizadora de obras poderosas como “Que Bom Te Ver Viva”, “Quase Dois Irmãos” e “Uma Longa Viagem” nos apresenta situações que certamente lhes despertam emoções profundas. Estranhamente, algumas cenas que poderiam ser carregadas de dramaticidade estão numa chave tão comedida, que abrange da mise-en-scène às atuações, que me questiono se houve uma tentativa mal sucedida de emular a estética bressoniana através de uma composição mais econômica dos planos. O resultado é um filme por vezes frio e que beira o genérico.
Por fim, quando assume – literalmente – o tom professoral, Lúcia Murat acaba por enfraquecer ainda mais um projeto que decepciona pelo pouco impacto que gera. Ainda que capaz de evocar um desejo de que um dia os porões do esquecimento sejam abertos para que enfim – assim como ocorreu na vizinha Argentina – os culpados por tanta dor finalmente encarem de frente a Justiça, a reflexão proposta por este seu novo desabafo na forma de filme acaba se esvaindo devido a sua execução pouco criativa, muito aquém da capacidade e relevância da voz de sua mensageira.