“O Jogo da Rainha”: Drama histórico dirigido por Karim Aïnouz retrata a vida da última esposa de Henrique VIII | 2024
“O Jogo da Rainha” (2023) é o primeiro filme em língua inglesa do diretor cearense Karim Aïnouz e só agora chega discretamente ao Prime Video para que o público brasileiro possa conferir no streaming. O longa-metragem teve sua estreia mundial no Festival de Cannes de 2023 e eu tive a oportunidade de conferir a obra junto ao elenco no Festival de Tribeca 2024 em Nova York.
Em linhas gerais, o enredo tem como foco central Katherine Parr (Alicia Vikander), a sexta e última esposa do Rei Henrique VIII (Jude Law) da Inglaterra. Ela era extremamente letrada, tendo escrito livros e difundido abertamente o conceito de mulheres estudarem no Século XVI. Parr sucedeu uma série de desfechos trágicos das esposas anteriores do Rei, que ou eram decapitadas (Ana Bolena e Catarina Howard) ou exiladas para morrerem abandonadas (Catarina de Aragão e Ana de Cleves). Ela também tinha voz ativa na Corte ao atuar como Rainha regente, exercendo o poder interinamente na ausência do Rei. O filme retrata um capítulo de decadência pessoal de Henrique VIII, que nesta altura do campeonato já estava obeso e com feridas fétidas em suas pernas.
Na sessão de estreia do filme no Festival de Tribeca, Jude Law comentou que mergulhou a fundo nesta fase dramática da vida de Henrique VIII, tendo inclusive utilizado no set de filmagem um perfume especificamente elaborado para ele, que remontava ao odor de fezes, sangue e suor. A ideia era simular in loco a repulsa que o monarca causava nas pessoas da Corte ao seu redor, seja quando Katherine Parr tinha que praticar sexo com ele ou quando era necessário trocar os curativos de sua perna, que na história esta praticamente em putrefação por causa de suas úlceras profundas na pele. Aïnouz consegue capturar com intensidade e de forma gráfica tais cenas, causando também aversão no público todas as vezes em que revela a perna de Henrique.
“O Jogo da Rainha” é uma livre adaptação do livro “Queen’s Gambit”, da autora Elizabeth Fremantle, que escreveu mais dois livros que também buscam abordar personagens fortes femininas impactadas pela proximidade com a corte dos Tudors.
Alicia Vikander consegue retratar Parr com pulso e inteligência, entregando uma performance notável sob a direção de Aïnouz. Quando sozinha, Parr demonstra controle total de seus ideais e assume condutas arriscadas, como quando decide visitar sua amiga e poetisa Anne Askew (Erin Doherty), uma pregadora protestante que ameaça as tradições da Igreja ao pregar clandestinamente ideias progressistas para homens e mulheres em florestas isoladas do reino. Quando Henrique está em cena, Parr precisa equilibrar sabiamente o que pode extrair de benefícios de seu marido e quando precisa recuar e ceder às loucuras e insanidades de um rei já delirante no final de sua vida. Mérito também de Jude Law que aqui se despe de qualquer vaidade para evocar o grotesco em sua interpretação de Henrique VIII, retratando-o como asqueroso e desagradável com todos que o cercam.
O longa-metragem passa a investir também nas estratégias políticas da igreja, representada pelo ameaçador Bispo Stephen Gardiner (Simon Russel Beale), que está obstinado em queimar na fogueira Anne Askew sob a acusação de heresia e em revelar a perigosa proximidade desta com Katherine Parr. A rainha precisa apagar as pistas que a conectam diretamente com sua amiga e também ocultar seus desejos íntimos por Thomas Seymour (Sam Riley), irmão de Jane Seymour, a terceira esposa do Rei Henrique.
Visualmente, o filme é belíssimo, com uma fotografia que exalta sombras e luminosidade em destaque dependendo dos caminhos que a história toma, bem como os figurinos precisos da época coordenados pelo figurinista Michael O’Connor, que já ganhou o Oscar por outro trabalho de época: “A Duquesa” (2009).
Esta adaptação pode até tomar liberdades históricas para contar a pouco explorada perspectiva da vida de Katherine Parr, mas é sem dúvida uma obra notável na filmografia de Aïnouz, que pode entregar filmes ousados como o recente “Motel Destino” (2024) e dramas históricos mais tradicionais como este.