“O Estranho”: Factual e Ficcional se misturam em narrativa intrigante, embora pouco reveladora | 2024
O conceito de “corpo cênico” refere-se ao uso do ator ou atriz como um elemento expressivo fundamental na construção e apresentação de uma cena. No cinema ou no teatro, o corpo cênico é mais do que apenas um veículo para a fala e a ação; ele é uma ferramenta dinâmica que pode comunicar emoções, intenções, estados de espírito e até mesmo narrativas inteiras através de gestos, movimentos e posturas. No documentário, apesar de sua proposta teoricamente mais voltada ao relato histórico ou factual, esse conceito também se aplica, por mais paradoxal que isso possa parecer, afinal, uma vez ligada a câmera, todos somos personagens. Eduardo Coutinho, em “Jogo de Cena”, explorou de maneira inovadora os limites entre ficção e realidade, utilizando o corpo cênico de forma magistral. Em “O Estranho”, essa mesma abordagem é aplicada, contudo, com menos efetividade. Infelizmente, apesar de bem-intencionado, o longa se perde em digressões, dissertando sobre temáticas densas sem se arriscar a sair do lugar-comum.
Dirigido pela dupla Flora Dias e Juruna Mallon e ambientado no maior aeroporto do Brasil, Guarulhos, o longa acompanha Alê (Larissa Siqueira), uma funcionária cuja história familiar perpassa a construção do aeroporto. Alê conduz a narrativa através de encontros que atravessam o tempo. Suas memórias, seu futuro e de seus colegas são marcados por uma questão comum: os vestígios do passado em um território em constante transformação.
Embora o documentário carregue essa natureza factual, ele não tem a obrigação de desvendar mistérios ou esclarecer questões específicas. Dependendo da intenção da produção, o objetivo pode ser apenas provocar, no melhor sentido da palavra. Essa parece ser a intenção de “O Estranho”, especialmente quando assume o caráter documental de maneira mais direta, explorando as terras ao redor da imponente estrutura do aeroporto, desde pequenas pedras até passagens subterrâneas. Alguns relatos de povos indígenas que lá viveram e ainda vivem tornam-se peças-chave para esse conteúdo mais provocativo.
O problema está na costura com o lado ficcional. Em meio a diálogos relevantes, há também sequências do cotidiano que destoam bastante. Um exemplo é quando três funcionários se encontram no “Duty Free”, em uma sequência de seis minutos de diálogos desinteressantes, seguida de uma dança em meio à grande loja pouco habitada. Por outro lado, há momentos inspirados, como quando Alê, em meio a um relato sobre o rio local e sua vivência nos tempos em que a água era limpa, tem seu pronunciamento repetidamente interrompido pelo decolar dos aviões, evidenciando de modo sutil, que esse tal “progresso” nem sempre nos fez avançar.
As intenções são as melhores e o longa também reúne uma representatividade de grande relevância, tanto na protagonista quanto nas pessoas ao seu redor. São personagens comuns e de fácil identificação. Todavia, o tom contemplativo e por vezes moroso se mostra insuficiente, não deixando margem para sentimentos duradouros que poderiam perdurar para além das cerca de 1h45min de duração da obra. Muito desse tempo, assim como o resultado final, parecem reunir palavras que giram em uma mesma direção, deixando a sensação de uma jornada que, ao fim, nos leva de volta ao ponto de partida.