“O Contato”: Doc analisa o processo ainda em curso de aculturação dos nossos povos originários | 2024
Não é necessário ir longe no tempo para encontrar notícias acerca do ininterrupto massacre dos povos indígenas brasileiros. Basta observar a recente situação envolvendo fazendeiros e membros da tribo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul para constatar que, desde a chegada das primeiras caravelas, a vida não tem sido amiga dos descendentes dos primeiros habitantes dessas terras. “O Contato”, longa exibido no Festival É Tudo Verdade deste ano, coloca-se como mais um documento fílmico a registrar os efeitos de uma relação marcada pela imposição cultural e pela exploração.
Acompanhando três famílias de diferentes etnias, o diretor e roteirista Vicente Ferraz direciona sua câmera para a região do Alto Rio Negro, mais precisamente no município de São Gabriel da Cachoeira. Neste local onde se encontra uma das maiores diversidades culturais do planeta, vemos em primeiro plano pessoas cujos relatos formam um painel de vivências que foram sendo pouco a pouco desfiguradas, além de paisagens que – embora ainda mantenham resquícios da beleza natural de outrora – refletem nas construções e nas estradas abertas ao custo de muito desmatamento o domínio do homem branco, agora sob a égide do capitalismo: “Fomos esquecendo nossas origens.”, afirma um dos entrevistados.
Se antes, a invasão dos colonizadores tinha sido responsável pela dizimação de inúmeros povos, agora a ação do agronegócio e do crime organizado coloca em risco a integridade daqueles que restaram. Torna-se curioso e triste percorrer aqueles rios no mesmo barco que os personagens escolhidos por Vicente e perceber o quanto é inglória a luta dos que ainda resistem para manter vivas suas tradições. Através da inserção de imagens de arquivo em determinados momentos é possível comparar pessoas e locais – observe a mudança drástica na forma de se vestir dos indígenas – o filme nos convida a refletir sobre o impacto devastador da presença do homem branco ao longo dos séculos. Testemunhamos também a tentativa de manutenção das línguas nativas, apesar da influência histórica de líderes religiosos que ensinavam o português visando à substituição das crenças de cada grupo pela fé cristã e, diante disso, não deixam de soar como verdadeiros trovões aos nossos ouvidos quando as palavras “medo”, “castigo” e “depressão” surgem para representar pelo verbo os sentimentos daquelas pessoas.
Dedicado à memória do indigenista Bruno Pereira, brutalmente assassinado em outro ponto da Amazônia junto do jornalista britânico Don Phillips em 2022, “O Contato” nos integra a uma realidade que parece irrefreável, tal como a correnteza dos rios pelos quais sua narrativa nos guia. Diante desse retrato de uma parte do país que sofre com o desamparo e que tende ao completo extermínio caso nenhuma política protetiva se estabeleça de maneira eficaz, só me resta lembrar do lamento expresso no célebre poema oswaldiano: “que pena!”.