“O Bom Professor”: Desafiando tabus, longa expõe estado de constante vigilância na era da pós-verdade | 2024
Festival Varilux 2024
O filme começa em uma sala de aula em uma escola dos subúrbios da França. A aula transcorre tranquilamente até que, ao ilustrar um termo, o professor faz um comentário ambíguo. Embora sem segundas intenções, a fala vira motivo de piada e é colocada fora de contexto. Sob a direção de Teddy Lussi-Modeste, o longa inicia com essa sequência não só pela busca de objetividade, mas também para convidar o espectador a ser testemunha da verdade. À medida que os eventos se desdobram, essa verdade inicial se torna secundária, cedendo lugar a versões subjetivas e a uma realidade que se transforma sob diferentes narrativas.
Na trama, acompanhamos Julien (François Civil), um jovem e dedicado professor, empenhado em criar real conexão com seus alunos. Ele oferece atenção especial a alguns estudantes de melhor desempenho, como Leslie (Toscane Duquesne), uma jovem tímida que parece se beneficiar deste apoio. No entanto, essa atenção diferenciada é rapidamente mal interpretada por alguns colegas, que passam a questionar as intenções de Julien. Rumores de assédio logo ganham força, envolvendo o professor e a aluna em uma situação delicada e repleta de tensão, onde julgamentos precipitados e mal-entendidos ameaçam arruinar suas reputações.
O recorte proposto por Lussi-Modeste evita o mistério: desde o início, temos clareza do evento que desencadeia toda a problemática. À semelhança do filme dinamarquês de mesmo tema, “A Caça” (2012), o foco se concentra exclusivamente no protagonista, restringindo-nos à sua percepção. Essa escolha permite ao filme aprofundar-se no impacto psicológico sobre Julien, concentrando-se no ambiente imediato – as quatro paredes que o cercam, seja em casa ou na escola. A repercussão entre os pais e as reações externas chegam de forma indireta, por meio de comentários e materiais que Julien acessa, inclusive as consequências jurídicas. Essa abordagem imprime uma tensão constante e evita exageros, sem nunca descambar para o melodrama. Em várias cenas, os personagens mantêm o temperamento contido, ainda que o semblante revele uma pressão à beira do limite, prestes a explodir.
Vivemos em uma era de constante vigilância, com uma quantidade de aparatos tecnológicos de monitoramento mais acessíveis do que jamais foi possível. A maioria da população, munida de um celular, possui acesso a informações que, há um século, nem mesmo a inteligência militar de um grande Estado conseguia. Essa conectividade, aliada ao fenômeno da pós-verdade, cria uma situação volátil: pequenas e grandes “explosões” de desinformação ocorrem a todo instante, alterando nossa visão de mundo e a maneira com que reagimos.
A música “Another Brick in the Wall”, escrita por Roger Waters na década de 60, criticava a rigidez e a opressão do sistema educacional, que via os estudantes apenas como peças a serem moldadas para se encaixarem em uma sociedade conformista. O refrão icônico — “We don’t need no education / We don’t need no thought control” — expressa uma rejeição à educação que controla o pensamento e sufoca o desenvolvimento pessoal. Desde então, alcançamos conquistas significativas, mas, como qualquer remédio, cada solução carrega seu próprio veneno. A sociedade, como organismo vivo, demanda reflexão e mudanças constantes.
“O Bom Professor” dialoga profundamente com o espírito do nosso tempo. Em meio a conquistas de autonomia, direitos e liberdades, surgiram também novos desafios, revelando que, na busca pela emancipação, a complexidade social se intensifica, exigindo que questionemos e ajustemos nossas práticas e valores continuamente.